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17/08/2017 - 10:02

Luta antimanicomial: extinto processo contra psicólogos

Juiz de Sorocaba julga improcedente ação de indenização de hospitais psiquiátricos

Luta antimanicomial: extinto processo contra psicólogos

Improcedentes. Assim os pedidos da Clínica Psiquiátrica Salto de Pirapora, dos hospitais psiquiátricos Santa Cruz, Vale das Hortências e Vera Cruz, do Instituto Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima e da Mental Medicina Especializada foram julgados pelo juiz Mario Gaiara Neto, da 3ª Vara Cível da Comarca de Sorocaba (SP). Os hospitais alegavam que, desde novembro de 2010, os psicólogos sociais Marcos Roberto Vieira Garcia, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Lúcio Costa, fundador do Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas), articulavam ataques sistemáticos contra as instituições de saúde mental da região. Por isso, pediam indenização por danos materiais, no valor de R$ 82,8 mil, e morais, por arbitramento do juiz. Cabe recurso.

Sorocaba é a segunda cidade do país em número de leitos psiquiátricos do Sistema Único de Saúde (SUS) e Salto de Pirapora é a quarta. Quatro dos sete maiores manicômios do Brasil estão naquela região de São Paulo. Somados, os leitos dos sete hospitais psiquiátricos locais concentram o maior número de leitos de saúde mental do país.

Lúcio Costa lembra que tudo começou em 2009, com a criação do Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas) em Sorocaba. “O movimento, organizado por estudantes e trabalhadores da saúde mental, buscava demonstrar que os hospitais psiquiátricos violavam direitos básicos da população internada. Tinha como proposta substituir essas instituições por rede comunitária de saúde mental, de acordo com as legislações vigentes.” As violações dos direitos humanos nos manicômios da região, apesar de serem de difícil investigação, começaram a ser denunciadas pelos integrantes do Flamas.

Costa diz que a vitória em primeira instância não é individual dos processados, mas da tese de que o manicômio não é e nunca foi espaço de tratamento, senão de segregação de pessoas em sofrimento psíquico. “Havia interesses em cada cabeça internada ali, em cada corpo depositado naqueles hospitais. A loucura, no Brasil, sempre foi vista como estratégia de enriquecimento para empresários que se organizavam para promover a segregação da população em sofrimento psíquico, assim como ocorre hoje com as pessoas que fazem uso de drogas.”

Luta antimanicomial: instituições não são depósitos de corpos

Violações de direitos humanos nos hospitais psiquiátricos da região são antigas. Em 1940, o Manicômio Dr. Luiz Vergueiro já recebia críticas de setores ligados à Psiquiatria brasileira da época, fortemente higienista, ao caráter de “depósito” do manicômio, que servia também de delegacia e prisão. O caso mais singular levou ao fechamento do hospital psiquiátrico de Pilar do Sul, em 1996, após vistoria de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de São Paulo, que investigava a situação dos manicômios no Estado. Uso de camisa-de-força, existência de estaca para espancamento de pacientes, falta de médicos, terapeutas ocupacionais e enfermeiros e péssimas condições de higiene foram algumas das irregularidades constatadas. A divulgação de mortes nos hospitais psiquiátricos também conseguiu furar o bloqueio da mídia local ao tema.

Luta antimanicomial: pesquisa cruza indicadores do DataSUS

A Reforma Psiquiátrica e a luta antimanicomial levaram os integrantes do Flamas a levantar indicadores sobre os hospitais psiquiátricos da região de Sorocaba, a partir dos dados públicos disponíveis. A pesquisa, coordenada pelo psicólogo Marcos Roberto Vieira Garcia, descobriu várias violações de direitos humanos entre 2004 e 2011 nos hospitais psiquiátricos da região. Para isso, foram usados números do banco de dados do Sistema Único de Saúde (Datasus). A divulgação da pesquisa e as ações dos integrantes do Flamas ajudaram a fortalecer o poder de argumentação dos movimentos sociais que lutam pela reforma psiquiátrica.

O estudo apontou número excessivo de óbitos nos manicômios da região de Sorocaba, que teve mortalidade 118% maior do que a dos outros grandes manicômios do Estado de São Paulo entre 2004 e 2011. Foram 825 no período pesquisado, uma a cada três dias. Sinalizou, ainda, aumento das mortes nos meses mais frios do ano, o que sugere negligência em relação aos cuidados adequados durante o frio. Os indicadores mostraram também que o número de leitos era cinco vezes superior ao recomendado pela legislação, alto índice de pacientes-moradores indocumentados e número de funcionários inferior à metade do previsto pela lei.

Reforma psiquiátrica

“Apesar de a legislação vigente no Brasil garantir que os pacientes devam ser tratados preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental, conforme a Lei 10.216, algumas regiões brasileiras ainda estão em descompasso com os princípios da reforma psiquiátrica, por motivos políticos, financeiros e ideológicos”, escreveu Marcos Garcia na conclusão do trabalho. A 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, prevê à pessoa acometida de transtorno mental o direito ao melhor tratamento do sistema de saúde, garantindo o cuidar com humanidade, respeito e sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e comunidade, além de protegê-la de qualquer forma de abuso e exploração

Em 2011, os hospitais ajuizaram uma ação de indenização por danos materiais e morais contra Lúcio Costa e Marcos Garcia. Em 2012, um termo de ajustamento de conduta (TAC) foi firmado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal com as Prefeituras de Sorocaba, Salto de Pirapora e Piedade, a União e o Estado de São Paulo, que assumiram o compromisso de enfrentar os problemas no atendimento dos sete hospitais psiquiátricos particulares da região de Sorocaba que compõem o maior polo manicomial do país, com mais de 2,7 mil pacientes.

O TAC prevê a adequação da assistência aos pacientes com transtornos mentais e implementação de políticas e programas do Sistema Único de Saúde. “O hospital psiquiátrico era um negócio na região”, diz Lúcio Costa.

Reconhecimento da luta antimanicomial

As fiscalizações nos hospitais confirmaram algumas hipóteses levantadas pela pesquisa, que acabou recebendo apoio da Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e da Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), da Frente Estadual Antimanicomial de São Paulo e dos Conselhos Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-06) e Federal de Psicologia (CFP). O reconhecimento veio em 2011, com a premiação do Flamas na categoria “Enfrentamento à Tortura” do Prêmio Direitos Humanos da Presidência da República. Em 2012, Marcos Garcia também foi contemplado no IV Prêmio “Carrano” de Luta Antimanicomial e Direitos Humanos. Em 2015, foi a vez de Lúcio Costa ser agraciado com o mesmo prêmio.

A situação dos internos dos manicômios de Sorocaba e região revela um modelo de atenção à saúde mental ultrapassado. A segregação está associada ao imaginário do louco perigoso, à visão de que o ‘outro’ que nos ameaça deve ser excluído do convívio social. “O reconhecimento dos direitos humanos dos considerados “loucos” implica reconhecê-los como ‘humanos’”. Mas como parar o processo? Interrompendo a desumanização e combatendo a segregação são dois passos indispensáveis desse processo.

História

A história começa no final do século XIX, como aponta a pesquisa “A Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial: passado, presente e perspectivas para Sorocaba”, de autoria de Marcos Garcia e equipe. A região de Sorocaba foi pioneira no Brasil na criação das “colônias agrícolas”, no início da República. Data de 1891 a lei que instituiu três colônias agrícolas para alienados. A de Sorocaba começou a funcionar em 1895. Em 1918, o Manicômio Dr. Luiz Vergueiro foi aberto e registros dos anos 1940 mostram críticas de setores ligados à Psiquiatria brasileira da época, fortemente higienista, ao caráter de “depósito” do manicômio, que servia também de delegacia e prisão.

Entre os anos 1960 e 1970, os hospitais psiquiátricos no Brasil cresceram vertiginosamente, ocupados por pacientes do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e por ex-internos dos grandes hospitais públicos. O processo fortaleceu donos de hospitais psiquiátricos, que se tornaram fortes defensores da manutenção dos hospitais psiquiátricos nas décadas seguintes. Pelo menos oito novos hospitais psiquiátricos foram criados na região de Sorocaba, que se tornou um dos maiores polos manicomiais do Brasil. Havia dois hospitais em Sorocaba, dois em Salto de Pirapora, um em Piedade, um em Pilar do Sul, um em São Roque e um em Itapetininga, todas cidades em um raio de 60km próximas a Sorocaba. A grande maioria desses hospitais foi criada em regime de sociedade entre médicos. Por isso, a região viu nascer um grupo de defensores do modelo hospitalocêntrico e, na década de 1980, a resposta à Reforma Psiquiátrica, que buscava contribuir para a desinstitucionalização dos usuários dos serviços de saúde mental, a partir da criação de rede substitutiva de apoio ao usuário e sua família, foi tímida.

Marcos Roberto Vieira Garcia diz que Sorocaba e região eram bastião de resistência à reforma psiquiátrica. Para ele, a sentença representa vitória do movimento antimanicomial e mostra que o processo é inevitável. “É uma vitória para todos os que lutam por uma sociedade mais inclusiva.”