O plenário da Câmara dos Deputados concluiu, na terça-feira (3), a votação dos destaques do Plano Nacional de Educação (PNE), que seguiu para sanção da presidente Dilma Rousseff. O Conselho Federal de Psicologia entende que o PNE é um instrumento importante para realizar a gestão educacional no Brasil e avançar em um dos pontos mais atrasados de nosso País, a educação. Entretanto, destaca que ao prever avanços, trouxe também retrocesso.
O trecho “com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” foi suprimido e mantida a redação “a promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. A retirada deste trecho automaticamente retira outro que exime o estado brasileiro de promover programas, ações e políticas de combate ao preconceito sexual, de gênero, e étnico-racial nas escolas públicas.
O CFP acompanhou a tramitação do plano e manifestou a preocupação em relação às mudanças no texto, em carta encaminhada, no dia 28 de maio, aos parlamentares antes da votação, como se lê abaixo:
Nota pública
Comissão de Direitos Humanos do CFP manifesta preocupação em relação à mudança no texto do PNE
As metas e ações previstas no Plano Nacional de Educação (PNE) deveriam ser compreendidas a partir de um quadro normativo mais amplo. Como previsto na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e uma vez que tratam de temáticas concernentes às diversas instituições e sujeitos que compõem o Sistema de Ensino em seus distintos níveis, a formulação de políticas públicas em educação deve estar associada ao compromisso com formas democráticas de gestão e participação. É possível reconhecer no texto os profícuos debates travados nas etapas da Conferência Nacional de Educação ou, retrocedendo-se um pouco mais, os diagnósticos sobre as falhas percebidas no “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação” e no “Plano Desenvolvimento da Educação”. Em maior ou menor escala, ainda que coordenadas pelo Executivo Nacional, os dois processos contaram com a participação e colaboração de representantes de Conselhos de Educação, órgãos do poder executivo – estadual e municipal-, além de pessoas vinculadas a diversas instituições comprometidas com atividades de formação humana.
A incorporação de questões trazidas por fóruns anteriores, convertidas em metas do próximo decênio, aponta para o fato de que, ao se pensar políticas públicas em educação, a arena legislativa deve ser apoiada em suas decisões frente ao conjunto de desafios políticos e sociais envolvidos no processo de escolarização. Nessa direção, este Conselho vem a público manifestar-se no debate para afirmar que, diferentemente do que foi colocado por alguns integrantes da Comissão, questões relacionadas ao racismo, machismo, sexismo e homofobia não estão vinculadas a uma perspectiva escatológica de uma imaginada “ditadura gay”, mas são questões que resultam da desigualdade de acesso à escolarização de vários segmentos majoritários da população brasileira, em especial os negros; e a expulsão da escola de jovens que adotam, como garante a nossa Constituição, crenças ou identidades sexuais diferentes da maioria.
São dilemas que profissionais de educação, comprometidos com uma lógica democrática, enfrentam cotidianamente no desempenho de suas funções. A perversa interseção entre cor da pele e origem étnica, gênero, sexualidade e educação tem sido analisada por diversos institutos de pesquisa brasileiros. Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), UNESCO e Fundação Perseu Abramo têm indicado taxas elevadas de preconceito e de violência originadas por questões específicas como identidades de gênero, pertencimento racial e étnico e regionalidades nas escolas. Mais importante é: todas essas pesquisas apontam que quanto maior o índice de preconceito racial/étnico e de gênero/orientação sexual, menor é o índice de aprendizado revelado pelo índice de desenvolvimento da educação básica.
Aparentemente, a mudança textual operada pela Comissão Especial não leva em consideração os dados das pesquisas acima. A opção pela noção genérica de enfrentamento a quaisquer formas de preconceito e discriminação é claramente insuficiente frente aos problemas até então diagnosticados: há a pressuposição de que, ao se defender o interesse de todos, as partes estariam, logicamente, contempladas. Ocorre, porém, que em temas relacionados a Direitos Humanos é preciso o reconhecimento de uma cena que não é dada logicamente de antemão, mas que se vincula à realidade concreta, cada caso de discriminação do direito à educação e a não discriminação demanda ações específicas.
Como exemplo, podemos simplesmente observar a condução dos trabalhos da Comissão Especial e o conjunto de relações que ali se estabeleceram. Os defensores de uma posição universalista e descaracterizada carregavam, com orgulho, cartazes em que se lia: “Gênero Não!”. Demonstrava-se, com isso, uma nova forma de fazer política na atualidade: pautar temáticas gerais, na certeza de que, nessa generalidade, determinados temas e sujeitos não cabem. Trata-se da defesa de um universalismo igualitário que, paradoxalmente, reforça a manutenção de formas históricas de preconceito e discriminação, nomeadamente o racismo, o sexismo, o machismo e a homofobia em suas distintas dinâmicas regionais. A esse respeito, vejamos algumas análises conjunturais propostas pelo IBGE na síntese de indicadores sociais de 2012:
- Ao se cruzar raça/cor e remuneração, constatou-se que o rendimento médio das pessoas pretas e pardas equivale a 60% do rendimento das pessoas brancas (IBGE, 2012, p. 140); relacionando-se renda e evasão escolar, estimou-se que os jovens pertencentes ao quinto mais pobre da população têm 14,6 vezes menos chances de completar o ensino médio que os jovens pertencentes ao quinto mais rico (IBGE, 2012, p. 119); considerando sexo e taxas de mortalidade, verificou-se que a probabilidade de morte por causas externas entre homens é quase 6 vezes maior que entre as mulheres (IBGE, 2012, p. 206).
- Ainda segundo o IBGE, no mercado brasileiro, a população mais escolarizada tende a procurar trabalhos mais formalizados e, ultimamente, as mulheres ocupadas apresentaram um aumento superior ao dos homens tanto no que diz respeito à escolaridade, como à formalização do trabalho (IBGE, 2012, p. 138 – 139). Curiosamente, esse quadro parece não ter se traduzido em igualdade: constatou-se que, entre os mais escolarizados (12 anos ou mais de estudo), a desigualdade de rendimentos é extremamente elevada, dado que as mulheres recebem 59,2% do rendimento auferido pelos homens (Idem, p. 140).
Ações importantes para dar conta da evidência acumulada sobre a importância da escola na diminuição da desigualdade têm sido empreendidas, por exemplo, pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM/PR), Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), que promovem cursos de formação destinados a educadores e gestores de escolas. Esses cursos, ofertados como cursos de aperfeiçoamento (180h) e/ou Especialização Lato Sensu (360h), reconhecem a escola como espaço propício à difusão de estigmas e preconceitos, e também veem seus educadores como atores importantes no combate à discriminação e ao preconceito por gênero, raça, orientação sexual, dentre outros.
Ao se tornarem as análises mais complexas, como se verifica através dos relatórios nacionais e posições consagradas em Conferência Nacional de Educação, as desigualdades, além de simplesmente constatadas, acabam adquirindo forma e especificidade; seu caráter genérico, nesse processo, passa a admitir certa possibilidade de tradução, passa a significar desigualdade de renda, desigualdade regional, desigualdade étnico/racial, compondo diferentes perspectivas sobre nossa sociedade. Nota-se, portanto, que estamos diante de sujeitos e problemas específicos, definidos e analisados a partir de critérios também específicos.
Ressalta-se que a caracterização explícita de problemas a serem enfrentados, antes de tudo, está pautada em princípios democráticos, de pluralismo, de busca de igualdade e justiça social por meio de ações que busquem equidade que responderão a problemas não resolvidos pela nossa democracia representativa. Respeitar a singularidade de cada cenário de discriminação resulta em estratégias consagradas pela evidência técnico-científica brasileira e internacional, dedicadas a colocar em pauta a não representação de vários interesses existentes na sociedade.
Pelo exposto, espera-se que, em plenário, seja retomada a discussão realizada pela Comissão Especial no que diz respeito à manutenção da especificidade do preconceito, adotando-se a redação inicial contida no projeto do PNE.
COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA