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06/03/2015 - 11:11

Dia Internacional da Mulher e a psicóloga brasileira

Confira entrevista especial com Madge Porto, integrante do XVI Plenário do CFP

Dia Internacional da Mulher e a psicóloga brasileira

8 de março - layout 02A luta pelos direitos fundamentais das mulheres e por sua igualdade em relação aos homens avança e amplia conquistas ao longo da história. Mas a equidade de gênero, contudo, ainda está longe de se concretizar. A Psicologia, reconhecida como uma profissão de mulheres, também abriga essas desigualdades sociais e a discriminação presentes na sociedade. As psicólogas recebem menores salários, sofrem com assédio moral e sexual em seus ambientes de trabalho e enfrentam jornadas exaustivas (que incluem o trabalho doméstico), o que pode acarretar em dificuldades de investimento na formação e em outros prejuízos de ordem emocional e econômica, por exemplo.

Às vésperas do 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) entrevistou Madge Porto, Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB (2013) e psicóloga clínica da Universidade Federal do Acre (UFAC).

No XVI Plenário, Porto é responsável pela coordenação do GT Laicidade e Psicologia e pelo tema dos direitos humanos das mulheres. “É preciso que as psicólogas, assim como todas as mulheres, possam refletir porque elas saíram para o mercado de trabalho remunerado e ainda precisam fazer as tarefas que a elas eram imputadas quando não tinham trabalho fora de casa”, aponta.

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

Neste 8 de março, o que há a se comemorar e pelo que ainda é preciso lutar?

Temos muito a comemorar, sim. Avançamos na luta pelos direitos das mulheres, graças ao empenho de muitas de nós que se organizaram em busca da conquista desses direitos. Todavia, há muito a se fazer. O movimento feminista ainda se faz necessário num país com tanta influência de valores patriarcais e judaico-cristãos. Ainda é preciso lutar pela consolidação de direitos conquistados, como o direito a não sofrer violência, e pela conquista de novos direitos, como salários iguais para a mesma função e a divisão das tarefas domésticas, por exemplo.

Quais seriam as principais conquistas das mulheres brasileiras e quais os principais desafios para a superação de marcas patriarcais, machistas e misóginas em nossa sociedade?

Podemos destacar, como principal conquista, a Constituição Federal de 1988, que reconhece direitos iguais para mulheres e homens, após décadas de luta do movimento feminista. Esse foi o marco que possibilitou a normatização de vários outros direitos e a proteção das mulheres em muitas de suas vulnerabilidades constituídas numa sociedade marcada por valores patriarcais, machistas e misóginos. Dentre as conquistas pós Constituição, destaco a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), um marco no combate à violência contra as mulheres. Outra conquista importante é o reconhecimento das mulheres como pensadoras e produtoras de conhecimento, como no Programa Pioneiras da​ Ciência do Brasil1, do CNPq, que apresenta o perfil de algumas psicólogas como reconhecidas cientistas na construção da Psicologia no Brasil.

Os desafios são muitos, mas a desnaturalização do lugar social estabelecido para as mulheres é um dos mais importantes. A ideia de ligar as mulheres à natureza, ou seja, relacionar os papéis atribuídos às mulheres na sociedade como determinados pela natureza precisa ser questionada. As mulheres precisam consolidar o lugar de sujeito de seu desejo e de seus direitos.

Quase 90% dos profissionais cadastrados no CFP são do sexo feminino. Como você enxerga as condições do trabalho das mulheres psicólogas em relação aos direitos trabalhistas e no exercício da profissão?

As psicólogas vivem os mesmos dilemas e dificuldades das mulheres de uma forma geral no Brasil. Pesquisas2 apontam que independente da raça/etnia ou classe social, muitas mulheres ainda ganham menos que os homens de seu mesmo grupo social realizando a mesma função. As psicólogas também têm a dupla ou a tripla jornadas de trabalho, pois continuam sendo as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e pelos cuidados com as crianças e os/as idosos/as. Essa demanda faz com que as psicólogas tenham menores possibilidades de investimento na formação e de participação em instâncias políticas.

Os psicólogos assumem proporcionalmente mais cargos de poder nas instâncias políticas da categoria e têm melhores oportunidades de trabalho por terem mais disponibilidade de tempo para assumir esse tipo de atividade e para se dedicar a formação profissional, por exemplo, pois não têm o compromisso com a divisão das tarefas domésticas e nem com o cuidado da família. Esse acúmulo de tarefas das mulheres, e também das psicólogas, que têm pouca valorização social, limita o investimento na carreira e também determina a busca por áreas específicas, como a Psicologia clínica, por ser uma possibilidade de trabalho remunerado com maior oportunidade de flexibilidade de horário, por exemplo. Dessa forma, o que esse quadro demonstra é que a condição de gênero traz consequências para uma profissão com tantas mulheres e, ao mesmo tempo, a profissão é influenciada por essa característica de gênero, ou seja, ser formada majoritariamente por mulheres.

Quais são as desigualdades que as psicólogas ainda enfrentam em seus diferentes espaços de trabalho? 

Menores salários, jornadas estafantes com muitas horas de trabalho não remunerado – o trabalho doméstico -, dificuldade em investir na formação e se dedicar à carreira por ter muitas demandas a cumprir.

As mulheres psicólogas também enfrentam jornadas triplas de trabalho, a exemplo de outras profissionais. Como superar essa dificuldade? 

Para superar essa dificuldade é preciso abrir o debate de forma a desnaturalizar as atribuições que tradicionalmente são impostas às mulheres. É preciso que as psicólogas, assim como todas as mulheres, possam refletir porque elas saíram para o mercado de trabalho remunerado e ainda precisam fazer as tarefas que a elas eram imputadas quando não tinham trabalho fora de casa. Por que precisam cuidar da casa, das crianças, idos@s? Por que essas tarefas ainda cabem a elas? Por que as atividades domésticas não são dividas com os tod@s @s moradores/as da casa? Enquanto essas questões não forem desnaturalizadas, enquanto não for reivindicada a divisão do trabalho doméstico e dos cuidados com quem precisa de cuidados, esse acúmulo de tarefas continuará.

Como o CFP tem tratado as demandas específicas das mulheres profissionais no que se refere às condições e relações de trabalho e à pluralidade de suas atuações?

O XVI Plenário do CFP tem aprofundado essa discussão, que por muitos anos foi esquecida no Sistema Conselhos. Só entre os anos de 2011 e 2012 teve início a discussão interna na categoria sobre a questão de gênero, quando houve a percepção de que a Psicologia é formada majoritariamente por mulheres e que isso tinha/tem um impacto no fazer da Psicologia. Agora essa discussão tem prioridade na gestão do CFP, sendo os Diretos das Mulheres e, neste ano, os Direitos Sexuais e Reprodutivos,  uma pauta relevante da agenda dos grandes temas da sociedade do CFP. Assim, o tema dos direitos sexuais e reprodutivos foi objeto de discussão no IV Congresso Brasileiro da Psicologia e também terá uma mesa de discussão no IX Conpsi, em maio deste ano. Os direitos sexuais e reprodutivos foram destacados por ser o tema escolhido na Apaf para a pesquisa do Crepop e por trazer às profissionais o confronto com questões tensas que estão inflamadas na sociedade – e que o CFP abre para a categoria o debate, sempre relacionando, como em qualquer pauta de direitos humanos, o fazer profissional e suas condições de trabalho para propor e encaminhar soluções de forma coletiva e considerando a diversidade e pluralidade que marcam a profissão.

As mulheres em situação de violência são muitas vezes demandantes de acompanhamento psicológico. Você acha que esta demanda é suprida por parte do Estado brasileiro hoje?

A relação entre a Psicologia e a política pública de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres é estreita, pois, no modelo proposto de intervenção em casos de violência, psicólogas/os fazem parte da equipe mínima necessária para o funcionamento dos principais equipamentos de atenção a essas mulheres: casas-abrigo e centros de referência a mulheres em situação de violência. Há, por parte da política especializada, uma demanda para a Psicologia, um lugar para o trabalho em Psicologia. O estabelecimento de profissionais da Psicologia nas equipes da política para mulheres em situações de violência demostra que se entende que há um papel a ser cumprido pela profissão no combate a esse tipo de violência, o que faz a temática ser relevante para a categoria não só por ser um tema importante no espectro dos direitos humanos, como também na discussão do trabalho em Psicologia.

Nesse contexto, entendo que avançamos na construção do enfrentamento à violência contra as mulheres com destaque especial para a Lei Maria da Penha, como já falei anteriormente. Todavia, muito há a ser feito. No caso do trabalho em Psicologia, é preciso discutir qual o papel de psicólogas/os na equipe multiprofissional nesta política pública, além de suas condições de trabalho, pois os estudos apontam que há limitações nos resultados alcançados, o que nos coloca um desafio importante enquanto categoria profissional.

O aborto e o direito das mulheres sobre os próprios corpos são questões polêmicas na política brasileira atual. Como as psicólogas e psicólogos podem contribuir nesse contexto? Como o CFP tem atuado nessa questão?

O CFP tem trazido essa temática para o debate com a categoria de forma mais direta e prioritária, apesar das dificuldades encontradas quando se enfrenta a discussão de temas polêmicos, muitas vezes discutidos com paixão e presos a noções pré-concebidas. Entendemos que a interrupção voluntária da gravidez é uma questão que deve ser debatida como um problema de saúde pública e considerando que estamos em um país laico. A questão que queremos discutir não é quem é ou não a favor do aborto, pois essa questão é de ordem privada. A discussão consiste em avaliar se uma mulher que aborta precisa ser criminalizada.

A descriminalização do aborto não é um incentivo ao aborto, pois ninguém faz aborto por prazer, faz por avaliar que não deve dar continuidade a uma gestação, seja pelo motivo que for, pois só quem está grávida pode avaliar sua condição de prosseguir ou não uma gestação. O fato é que tod@s nós conhecemos uma ou mais mulheres que abortaram, que tiveram seus motivos pessoais, concordemos ou não. Ocorre que mesmo sendo crime, quando uma mulher decide abortar, ela o faz; todavia, as mulheres que têm dinheiro podem pagar por uma intervenção que proteja sua vida e sua saúde, já as mulheres pobres não têm essa possibilidade e se submetem a situações de perigo que em muitos casos culminam com a morte. É por isso que esse tema precisa ser seriamente debatido no Brasil: o custo de tantas vidas de mulheres jovens em nome de que?

As psicólogas/os têm um papel muito importante nesse contexto, pois além de fazerem parte da equipe multiprofissional de assistência ao aborto previsto em lei – pois o aborto não é crime em três casos: risco de morte para a mulher, estupro e feto anencéfalo – é um/a profissional da Psicologia que poderá ser procurado por mulheres que solicitam apoio para seu sofrimento psíquico na vivência de uma situação como está. As/os profissionais da Psicologia podem se deparar com o sofrimento no contexto de uma situação de abortamento provocado ou não em qualquer área de trabalho, e por isso devem estar preparados/as, conhecedores/as dos direitos das mulheres ao sigilo profissional e à intervenção profissional que não induza a qualquer tipo de convicção, inclusive religiosa.

Como a psicóloga pode se envolver nas políticas e ações do CFP voltadas para as mulheres?

As psicólogas podem participar dos debates promovidos pelo CFP no Centro de Orientação do Trabalho em Psicologia, nas redes sociais e nos encontros da categoria, apresentando suas experiências profissionais com o tema e contribuindo para a construção de uma política pública que demanda o trabalho em Psicologia e que precisa contar com a participação efetiva de quem exerce a profissão.

1 http://www.cnpq.br/web/guest/pioneiras-da-ciencia-do-brasil

2 Lhullier, Louise A. (Org.) (2013). Quem é a Psicóloga brasileira? Mulher, Psicologia e Trabalho /Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP.

Venturi, G., Recamán, M. & Oliveira, S. (Ed.) (2004). A mulher brasileira nos espaços públicos e privados. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.

Confira o programa Entre Nós especial sobre Mulheres e Psicologia, que tem como entrevistada principal a psicóloga Madge Porto.