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24/03/2016 - 10:33

Memórias da Psicologia: respostas à criminalização

As respostas da Psicologia à criminalização da adolescência na história

Memórias da Psicologia: respostas à criminalização

O impacto da redução da maioridade penal no Brasil é algo brutal. Além de converter jovens pobres e negros em inimigos públicos, a medida desconsidera a peculiar condição de desenvolvimento psicológico, biológico e social de crianças e adolescentes. Adolescência é passagem, fase, etapa, período, trânsito, atravessamento.  É estado, condição e limite. Transição entre dois estatutos: o que rege a criança, que brinca e aprende, e o adulto, capaz de se responsabilizar. As transformações do e no corpo biológico do adolescente são marcantes. Bem como as psicológicas e sociais. Adolescer é preparar-se para o próprio e o diferente. É construir identidade.

Somos totalmente contrários à redução da maioridade penal por diversas razões. A redução: 1- não resolve a questão ou o problema, ataca o indivíduo, desconsidera as causas da violência, da criminalidade e do envolvimento de adolescentes com atos infracionais; 2- é uma resposta irracional a um apelo da sociedade que podemos definir como uma demanda por justiça social, mas que a grande mídia reduz à problemática da redução da maioridade penal; 3- carrega o perigo de criminalização da adolescência com o corolário de atribuir um lugar de periculosidade a todo adolescente que apresente um comportamento desviante; 4- inclui adolescentes num sistema penal falido, num lugar que produz mais miséria humana e criminalidade; 5- secundariza a importância de cumprir o ECA e implementar o SINASE, garantindo a internação para o adolescente conforme os direitos humanos mais fundamentais; 6- generaliza a defesa do Direito Máximo, lei e ordem para o maior número de cidadãos, permitindo que anseios totalitários defendam punições sempre mais severas; 7- reduz o espaço para  a justiça restaurativa, a qual concebe o crime como expressão da história de segregação do condenado, história marcada por conflitos interindividuais, relações de antagonismo e exclusão que se estabeleceram entre a sociedade e o sujeito que se encontra condenado ou em cumprimento de medida de internação.

Preferimos uma visão que rompe com o positivismo criminológico. Este busca as causas do problema nos indivíduos, destacando as causas individuais ou naturais (vontade, genética, caráter, etc.) como determinações primárias dos atos criminosos ou violentos. Defendemos uma criminologia crítica. Aqui o sujeito que comete o ato infracional não pode ser separado do ato propriamente dito e muito menos das suas relações sociais. Assim, a criminologia crítica investe o corpo do social e da sociedade como responsáveis pela causação multifatorial dos crimes.

Infelizmente, hoje o debate gira em torno de mudar o ECA, aumentar o tempo da internação para aqueles que cometem crimes hediondos, reduzir a idade penal para aqueles que entre 16-18 cometam crimes como roubo qualificado, tráfico de drogas, etc. Retornamos a pergunta: é necessário e/ou suficiente procedermos assim? E caso a ignorância e a vingança permaneçam, reduzindo-se a idade penal para 16 anos, o que faríamos com os adolescentes de 15, 14, 13, 12 anos? E as crianças?

Assim como reduzir a maioridade penal não resolve o problema, outras respostas que partem do “emocionalismo” social não são necessárias e nem suficientes para o enfrentamento da questão. As consequências perniciosas da redução da maioridade penal também afetam o trabalho do psicólogo. Como trabalhar fora das medidas socioeducativas? O psicólogo, sem a perspectiva da proteção integral, da socioeducação e da responsabilização progressiva,  poderia fazer o que? Investir na criminalização da infância e da adolescência significa deixar de promover políticas públicas e sociais nas áreas da educação, da assistência social e da saúde – espaços em que a Psicologia pode oferecer inúmeras contribuições.

As respostas daqueles e aquelas que lutam contra a redução da maioridade penal são aquelas em que a Psicologia pode ter papel importante. Compreendemos que a solução passa por: defender o ECA; implementar o SINASE; intensificar a aplicação, avaliação e controle de medidas em meio aberto; aumento no número de vagas na semiliberdade; fim da reprodução do modelo carcerário adulto na privação de liberdade para adolescentes; sair da ênfase na disciplina, controle, ortopedia, punição; e buscar um modelo socioeducativo, enfatizando aspectos sociais, antropológicos, econômicos, pedagógicos e psicológicos.

Deveríamos refletir: não haveria algo mais sensato a oferecer aos nossos adolescentes e excluídos de toda ordem do que o encarceramento, a vingança a qualquer custo, o desrespeito aos direitos, a criminalização de comportamentos, a condenação à morte pela via de uma cidadania negativa (armas- drogas- crime -prisão- morte)?

As tentativas de criminalização da infância e da adolescência não são algo novo no Brasil. São parte de uma história de um país que, normalmente, tratou a pobreza como um “caso de polícia”. Da mesma forma, a luta da Psicologia em defesa dos direitos de crianças e adolescentes e contrária à mera criminalização e punição não é algo novo, mas é parte de sua história.

Em 1929, Helena Antipoff, educadora e psicóloga russa, chega ao Brasil, em Belo Horizonte (MG), a convite do Governo brasileiro para dirigir o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento. Assustada com a quantidade de crianças que perambulavam e dormiam pelas ruas, vivendo em péssimas condições, fundou, com a ajuda de colaboradores, a Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais com a finalidade de abrigar iniciativas de atenção à infância e à adolescência. Dentre as instituições abrigadas na Sociedade Pestalozzi, uma é digna de nota: a Associação de Assistência ao Pequeno Jornaleiro (AAPJ – foto), em 1934.

Na época, o trabalho era permitido para pessoas a partir dos 12 anos de idade. Muitos adolescentes trabalhavam como vendedores ambulantes de jornais. Jovens dormiam na rua enquanto esperavam o dia amanhecer para receberem os impressos que seriam vendidos e trabalhavam até meia-noite. De acordo com Borges (2014), Antipoff realizou uma campanha para a criação de um serviço de assistência a esses pequenos trabalhadores. A educadora reconhecia a condição especial de ser criança e a necessidade de que ela fosse protegida da exploração.

A AAPJ surgiu com a finalidade de proteger e amparar crianças e adolescentes envolvidas em qualquer atividade laboral. A instituição buscava ajudar o poder público a fiscalizar o trabalho evitando situações de exploração infantil e orientar profissionalmente as crianças. Além disso, a Associação pretendia oferecer oficinas com o fim de possibilitar melhores condições de vida do que aquele em que estavam empregados. Foram criados dormitórios para acolher aqueles que não tivessem onde dormir e a frequência na escola era uma obrigatoriedade para aqueles que frequentassem a instituição.

Vemos que Antipoff preocupou-se em oferecer condições para que crianças e adolescentes fossem educados. Nesse caso, a Psicologia serviu para, ao invés de responsabilizar individualmente as crianças por suas condições de vida, oferecer possibilidades para mudar sua vida.

Referências

Borges, Adriana Araújo Borges. Entre tratar e educar os excepcionais: Helena Antipoff e a psicologia na Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais (1932-1942). Tese de Doutorado. Faculdade de Educação./UFMG. Belo Horizonte, 2014. 347. pgs.

Texto originalmente publicado na ed. 112 do Jornal Federal