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03/08/2018 - 15:19

Argumentos para descriminalizar e legalizar o aborto no Brasil

Em audiência no Supremo Tribunal Federal, CFP mostra razões de ordem psicológica para defesa do tema

Argumentos para descriminalizar e legalizar o aborto no Brasil

“Por que a Psicologia brasileira é favorável à legalização e à descriminalização do aborto? Porque o aborto mobiliza elementos socioculturais estruturantes e violentos na sociedade e promove sofrimentos e fragilidades nas mulheres que o praticam. E isso tem a ver com a Psicologia: onde há opressão, onde há violência que subjuga, que provoca sofrimento.” Assim, a psicóloga Sandra Sposito, integrante do Conselho Federal de Psicologia (CFP), fez a defesa da posição institucional sobre o tema em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF).

Sandra Sposito participou, junto com a psicóloga Letícia Gonçalves, nesta sexta-feira (3), da Arguição de Descumprimento de Preceito Federal (ADPF) 442, que trata da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A defesa do ponto de vista do CFP foi transmitida pelo site institucional.

O CFP foi uma das 47 instituições e entidades selecionadas a apresentar argumentos sobre aspectos interpretativos dos arts. 124 e 126 do Decreto-lei nº 2.848/1940 (Código Penal), que tratam do aborto. Os critérios de seleção foram a representatividade técnica, a atuação ou expertise e a garantia da pluralidade e paridade da composição da audiência.

O aborto

No Brasil, o aborto é permitido em somente em gravidez resultante de estupro, em casos de risco de vida para a gestante e em anencefalia fetal.

Segundo o Ministério da Saúde, é a terceira causa de mortalidade da mulher, apesar de o país ter uma das maiores coberturas de métodos contraceptivos no mundo: 269 milhões de contraceptivos foram entregues à população nos últimos 17 anos. Esta cobertura, inclusive, fez a taxa de fecundidade nacional cair em 2017: 1,67% filho por mulher de 15 a 49 anos, abaixo da taxa de reposição recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Casos de aborto inseguro geram, ainda, uma sobrecarga para o Sistema Único de Saúde (SUS), com 250 mil hospitalizações por ano, das quais 15 mil complicações graves e 5 mil extremamente graves. O resultado é uma morte a cada dois dias.

Transexuais

É papel da Psicologia, como ciência e profissão, estudar a subjetividade humana, cuidar das pessoas e das coletividades em suas vulnerabilidades, sofrimentos e conflitos. Também é seu papel dar suporte no âmbito da saúde mental, nos processos de promoção de autonomia e cidadania. “O gênero feminino, historicamente associado à maternidade compulsória, socialmente responsável isoladamente pelos processos reprodutivos, responsável moralmente pela educação e cuidado dos filhos, vem buscando transcender esse aprisionamento nos papéis de gênero atribuído a elas. Numa luta histórica para se desvincular do lugar de domesticação, dependência e subalternidade”, explica Sposito.

Ao apresentar a posição da Psicologia, Sposito também falou que a gravidez e a escolha em mantê-la ou não também é um direito a ser garantido aos homens transexuais, que, apesar de pertencerem ao gênero masculino, podem permanecer com suas capacidades reprodutivas preservadas.

“Impedir o aborto, criminalizá-lo, é manter o lugar de não autonomia das mulheres e homens trans que desejem interromper uma gravidez. E mais do que isso, é impedir cidadania, é promover marginalização e estigmatização.”

Singularidade do sujeito

Letícia Gonçalves, por sua vez, disse que estudos brasileiros que privilegiam a singularidade do sujeito têm revelado dimensões importantes sobre aborto e sofrimento psíquico. Pesquisas de Daniela Pedroso e Francisco Viana com serviços de aborto legal indicam que, em condições adequadas, a interrupção voluntária da gestação tem significativo potencial de sensação de alívio, por parte das mulheres, bem como de retomada das dimensões cotidianas de trabalho e relacionais. Mesmo assim, sentimentos de incômodo foram relatados frente aos estigmas que significam o aborto, para parte da população.

Ela conta que, em casos nos quais a gravidez é resultante de estupro, há observância de reações diferentes daquelas que intencionam inferir que o aborto em si produz adoecimento psíquico. “Revela a multiplicidade das experiências subjetivas com a realização do aborto.”

Estudos que relacionam aborto e estigma social, diz Letícia, mostram a relevância de se considerar normas e estereótipos de gênero como produtores de estigmas sociais, que colocam mulheres que abortam em posições de inferioridade. “O estigma se apresentaria em três dimensões: a percepção da sua existência, a experiência com a discriminação que ele produz e a internalização pela mulher, produzindo sentimentos tais como culpa e vergonha. Desta maneira incorpora as dimensões sociais e culturais na produção de saúde ou adoecimento.”

Livre exercício da sexualidade

Em seus estudos sobre moralidades e aborto, Letícia fez um mapeamento das posições públicas sobre a questão e chama a atenção para a análise de dados sobre o que têm sido dito sobre, não só o aborto, mas sobre o livre exercício da sexualidade pelas mulheres, exercício este que não é crime no Brasil.

Para Letícia, ao exercício da sexualidade das mulheres têm sido atribuídos adjetivos que as caracterizam como irresponsáveis e promíscuas, e à deliberação sobre o aborto outros adjetivos, como assassinas, monstruosas, criminosas. “Estas posições performáticas são violências psicológicas contra as mulheres e atribuo a isto boa parte dos fatores de risco que podem não somente produzir algum dano psíquico às mulheres cisexuais, como impedir o acesso a estas e aos homens trans sexuais aos cuidados integrais à saúde.”

Sandra Sposito e Letícia Gonçalves defenderam, em nome do CFP, a ADPF 442, mostrando-se contrárias às violências psicológicas que produzem iniquidades de classe, gênero, raça, idade, região e orientação sexual no Brasil.

Histórico

O Sistema Conselhos de Psicologia, que representa mais de 317 mil profissionais da área, é gerido de forma democrática e representativa e desde 2010 vem se manifestando publicamente em defesa da legalização do aborto: “Os/as delegados/as do VII Congresso Nacional de Psicologia vêm manifestar seu apoio à legalização da prática do aborto no Brasil, independente de a gravidez ser decorrente de violência ou haver risco de morte para a mulher”.

Em 2012, a Psicologia reafirmou sua posição, por ocasião de proposta de juristas e parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito da revisão do Código Penal, no que se refere à descriminalização do aborto no país.