“Atenção psicológica em situações extremas: compreendendo a experiência de psicólogos”, publicado na edição 37.2 da revista Psicologia: Ciência e Profissão, retrata a experiência de profissionais que atuaram em situações extremas, como desastres ambientais, acidentes aéreos e conflitos armados. O texto é de autoria de Ticiana Paiva Vasconcelos, doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), e Vera Engler Cury, professora do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC-Campinas.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) publica artigos da revista no site e nas redes sociais – a versão eletrônica de Psicologia: Ciência e Profissão está na SciELO – para disseminar o conhecimento científico para a categoria e a sociedade.
Narrativas
As pesquisadoras promoveram nove encontros individuais com profissionais da Psicologia, nos quais foram elaboradas narrativas que desvelaram os significados da experiência dos participantes e possibilitaram apontar elementos em relação ao fenômeno estudado.
Os seguintes elementos foram apontados: conviver com o risco torna-se parte inerente a esse tipo de prática profissional; pertencer a uma organização humanitária é vital para a atuação; a atenção psicológica desenvolve-se em sintonia com as especificidades e demandas da situação, constituindo-se a partir de atitudes de empatia e aceitação às pessoas vitimadas, assim como de autenticidade em relação ao próprio psicólogo; a prática em situações extremas constitui campo fértil e peculiar de aprendizagem; e os psicólogos revelaram sentimentos de autorrealização e gratificação em decorrência de sua participação e o desejo por continuar atuando naqueles contextos.
De acordo com a pesquisa, o sentido da prática psicológica em situações extremas corresponde a um gesto humano de lançar-se em direção ao outro tendo como missão o cuidar. Ticiana Vasconcelos contou mais detalhes do estudo.
Qual o motivo da pesquisa?
Nosso interesse surge ao perceber a expansão da visibilidade das intervenções psicológicas em situações de desastres e emergências nos últimos anos. Embora a participação efetiva de profissionais da Psicologia nessas ocorrências ocorra desde a década de 1980, hoje há uma demanda explícita e implícita por serviços psicológicos tanto pela comunidade afetada quanto pelas próprias equipes de socorro.
A pesquisa converge com investigações desenvolvidas pelo grupo de pesquisa “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e intervenção”, da PUC-Campinas. Nosso interesse é contribuir com propostas clínicas apropriadas a diferentes contextos e o desafio é encontrar respostas para o fomento de práticas diferenciadas e eficazes.
Quais resultados devem ser destacados?
A pesquisa permitiu o contato com cenários ainda pouco familiares ao fazer psicológico e os resultados sugerem a complexidade que caracteriza o acontecer clínico em situações extremas como fenômeno contemporâneo singular.
A pesquisa descortinou elementos essenciais da experiência desses profissionais em situações extremas, que seriam manifestação inesperada ou grave nos rumos da vida das pessoas afetadas. É o campo da atenção psicológica que se efetiva sob elevado risco pessoal aos próprios profissionais, em função da desestruturação do contexto em vários níveis, acompanhada de persistente ameaça em termos de segurança e bem-estar.
Radicalmente exposto a diversos graus de ameaça à própria integridade física e psicológica, o psicólogo aprende não só a conviver com o risco, como também a exercer a prática a despeito dele.
Preparar-se para enfrentar o imponderável insere-se na rotina do psicólogo como parte do instrumental de trabalho, abalizando a intervenção e exigindo atitude de cuidado constante não somente com o outro, mas consigo mesmo. Todavia, diante das adversidades potencializadas pelo cenário disruptivo, pertencer a uma organização que gerencia as ações possibilita estruturar a intervenção e também oferece apoio e cuidado aos profissionais.
Atuar em situações extremas exige atitudes de flexibilidade e abertura ao novo, extrapolando qualquer arsenal teórico previamente constituído. Assim, o que instrumentaliza o psicólogo é fundamentalmente a sua própria experiência, possibilitando a reinvenção da atenção psicológica à medida que é praticada, ou melhor, vivida.
Ao longo das entrevistas, percebemos que os participantes do estudo demonstraram coragem, engajamento e satisfação ao atuarem nas missões. Situações atravessadas por perdas, mortes, incertezas, desestruturação e medo foram acompanhadas por sentimentos de autorrealização, gratificação e anseio por permanecer em estado de prontidão para entrar em ação. Tais sentimentos parecem emergir exatamente do fato de serem situações trágicas nas quais a atenção psicológica revela-se urgente e imprescindível.
Enfrentar situações extremas é para eles oportunidade para ampliar as próprias capacidades e possibilita transformação pessoal e profissional; percebem-se, ainda, mais sensíveis, abertos, proativos e flexíveis.
Como a Psicologia pode contribuir na atuação em situações extremas?
Os desafios impostos à Psicologia como ciência e profissão descortinam um processo complexo pautado pela busca por respostas que possibilitam a constituição de novas práticas apropriadas ao surgimento de contextos humanos que emergem de situações as mais diversas. As sociedades na atualidade estão expostas a trânsitos emergenciais, e este parece ser um fato, não mais uma possibilidade. A Psicologia precisa empreender um debate acerca da tarefa de cuidar do humano à sombra de acontecimentos disruptivos de grandes proporções e para desenvolver metodologias interventivas eficazes e consonantes com as exigências que se impõem nesses contextos.
Sendo um campo em construção, o que desenvolvemos revelou um campo fecundo para a compreensão e para a atualização da atenção psicológica inserida em enquadres diferenciados na atualidade, apontando para a necessidade premente de reinvenção da prática, bem como a implementação de um campo de formação profissional adequado às demandas que se fazem cada vez mais presentes aos psicólogos.