A Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência na Rede de Proteção vem sendo debatida pelo Conselho Federal de Psicologia, com a categoria e com especialistas de diversas áreas, como Direito, Antropologia, Educação, Saúde, Assistência Social e Justiça.
Há muito o CFP e a sua Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) demonstra preocupações em relação ao dispositivo denominado “Depoimento Sem Dano”, tanto nos aspectos relativos ao exercício da profissão de psicólogo quanto no contexto dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
O Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.126 de 2004 (PLC nº 35 de 2007), que trata da matéria, está paralisado no Senado Federal, pois a Psicologia mostrou que existem contradições no PL. Entendemos que o PL não trata da regulamentação de matéria existente no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), mas sim acrescenta matéria nova, qual seja, a inquirição judicial de criança e adolescente, vítima ou testemunha, para a produção antecipada de prova.
O procedimento de inquirição denominado Depoimento Sem Dano não é previsto para o único caso em que o Estatuto menciona uma situação que o permitiria. Trata-se do Capítulo III, relativo às Garantias Processuais.
Assim, antes de decidir sobre a técnica ou o modo da inquirição, deve-se primeiro decidir se o direito da criança de se expressar e de ser ouvida, tal como está no Estatuto, significa o mesmo que ser inquirida judicialmente como vítima ou testemunha para produção de prova antecipada, podendo tal prova se voltar, inclusive, contra seus pais e familiares.
De acordo com o PL, a inquirição judicial de criança e adolescentes, na forma prevista, tem o objetivo de evitar que uma perda da memória dos fatos prejudique a apuração da verdade real. No entanto, cabe também perguntar o que vem a ser a “verdade real”, principalmente quando contrastada com a subjetividade da criança e do adolescente.
Em nome desta “verdade real”, o PL propõe que a inquirição da criança e/ou adolescente seja feita em recinto especialmente projetado para tal finalidade, contendo equipamentos próprios à idade do depoente. No entanto, gostaríamos de perguntar se a utilização de tais equipamentos, como brinquedos, fantoches, bonecos, e eventualmente papel e lápis para desenho, não se constituiriam, antes, em técnicas de extração da verdade, sem que a criança se dê conta de que está sendo inquirida?
Os debates sobre a temática, realizados por este Conselho, possibilitaram reflexões sobre os aspectos éticos, a necessidade de fortalecimento da rede de proteção, a autonomia profissional, a interdisciplinaridade, a diversidade cultural e o papel do psicólogo.
O consenso sobre a atuação do psicólogo é que a escuta de crianças e adolescentes deve ser, em qualquer contexto, pautada pela doutrina da proteção integral, pela legislação específica da profissão, em marcos teóricos, técnicos e metodológicos da Psicologia como ciência e profissão.
Com base nesses fundamentos não é papel do psicólogo tomar depoimentos ou fazer inquirição judicial, ou seja, colocar seu saber a serviço de uma inquirição com o objetivo único de produzir provas para a conclusão do processo.
A Resolução CFP nº 010/2010 instituiu a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, na Rede de Proteção, e determina que é vedado ao psicólogo o papel de inquiridor no atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência.
Causa-nos apreensão que o colóquio realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Childhood Brasil denominado “O Depoimento especial de crianças e adolescentes e o Sistema de Justiça Brasileiro” tente esvaziar o papel da Psicologia nesse contexto ao discutir, refletir e disseminar os novos marcos jurídicos-legais e socioantropológicos da tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual, sem considerar as discussões que vem sendo realizadas pela Psicologia, com diversas categorias, e os entendimentos de que existem contradições na metodologia, do ponto de vista psicológico e legal.
Por isso, mantemos e reafirmamos nossas ressalvas ao procedimento denominado “Depoimento Sem Dano” e colocamos à disposição o acúmulo de debates e entendimentos do ponto de vista da Psicologia para que possamos garantir a proteção integral às crianças e aos adolescentes, sobretudo por sua condição peculiar de ser humano em pleno desenvolvimento, tal como proclama o Estatuto.