Temos acompanhado recentemente a prática do envio de crianças e adolescentes de forma compulsória, portanto, involuntária, para instituições de internamento sob a justificativa de ser encaminhadas a um suposto tratamento da dependência de crack. Contudo, não se coloca em pauta algumas questões que são anteriores a esta intervenção, tais como:
Como essas crianças e adolescentes chegaram à condição de morar nas ruas e de dependência de drogas? O direito, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de receber proteção integral com prioridade absoluta foi garantido de fato a estas crianças e adolescentes?
Ora, se o tivesse sido, provavelmente, elas não estariam nesta condição de desfiliação social, pois, tal condição não foi produzida do dia para a noite e sim como resultante de longos anos de submissão a processos variados de exclusão social e de violação de direitos.
Sabe-se que cotidianamente crianças e adolescentes, no Brasil, são vítimas de violência, não têm seus direitos fundamentais concretizados em políticas públicas efetivas e parece que não estão sendo prioridade absoluta na agenda dos municípios, estados e governo federal.
Bem, acionar políticas emergenciais como esta de internar involuntariamente implica em atualizar modelos de intervenção amplamente criticados por profissionais, por pesquisadores na área de ciências humanas e sociais e pelos movimentos sociais, como o da Luta Antimanicomial. Desde a década de 40, no século XX, há denúncias da ineficácia da segregação em asilos e em equipamentos sociais de fechamento que acabavam funcionando como espaços de reclusão da miséria e da produção de estigmas e violência.
O correlato da internação era a tutela dos corpos aprisionados e não o cuidado integral e a garantia de cidadania. Assim, somos contrários a este tipo de ação de encaminhamento de crianças e adolescentes usuários de crack de maneira compulsória às instituições de isolamento sob a rubrica de tratamento.
Afirmamos os princípios de um cuidado em meio aberto, humanizado, com equipes multiprofissionais qualificadas, que tenham condições de trabalho dignas garantidas, no âmbito das políticas de saúde mental e coletiva e da assistência social, que operem por meio dos equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS e CAPS-AD), os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS), os projetos de redução de danos, a escola, o Programa Estratégia Saúde da Família, enfim, uma rede integrada e com investimento econômico adequado irá propiciar a materialidade das políticas de garantia de convivência familiar e comunitária às crianças e adolescentes. Estas práticas deverão funcionar nos territórios de cidadania, atendendo com a devida atenção prevista nas leis de modo concreto não somente a questão de usuários de crack, mas em todas as frentes de atenção básica e especializada, sempre a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica.
Ainda, tendo em vista as notícias veiculadas pela imprensa relativas à possível decisão do governo federal de incluir as chamadas comunidades terapêuticas na rede de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), o Conselho Federal de Psicologia lembra a IV Conferência Nacional de Saúde Mental que decidiu o contrário dessa proposta. E o fez reafirmando que o investimento público deve ser destinado à criação e ampliação da rede de serviços substitutivos e não a lugares e instituições com princípios e formas de atuação contrários à ética que sustenta a prática nos serviços substitutivos: a defesa dos direitos humanos, a liberdade e a inclusão dos usuários no território.