Compreender as experiências – pessoais, religiosas, sociais e culturais – e as transformações “desenvolvimentais” das benzedeiras ao longo de suas trajetórias de vida e sua relação com a promoção da saúde de suas comunidades são as reflexões que Raquel Cornélio Marin e Fabio Scorsolini-Comin fazem no artigo “Desfazendo o “mau-olhado”: magia, saúde e desenvolvimento no ofício das benzedeiras”, publicado na edição 37.2 da revista Psicologia: Ciência e Profissão.
Raquel Marin é psicóloga formada pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e Scorsolini-Comin, doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Ele também é professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
O CFP publica todas as semanas um artigo da revista (a versão eletrônica está na SciELO) no site e nas redes sociais. É uma forma de a autarquia disseminar o conhecimento científico para a categoria e a sociedade.
Benzedeiras
Dez benzedeiras residentes em cidades do interior de São Paulo e Minas Gerais, com média de 62,5 anos de idade e de 26,2 anos de ofício foram entrevistadas pelas (os) pesquisadoras (es). A maioria relatou a transmissão do ofício a partir de um familiar, destacando a prática da benzeção como algo que pode ser ensinado, aprendido e transmitido por meio da tradição oral. Mesmo assim, o ofício também é compreendido como dom inato que atravessa o desenvolvimento, o que requer dedicação, paciência e abnegação.
As entrevistadas destacaram que a dificuldade de transmitir o ofício aos mais jovens pode estar relacionada à urbanização e maior acesso a equipamentos formais de saúde. Revelaram, ainda, a submissão da benzeção a uma lógica biomédica, dentro de um sistema de saúde que, por vezes, negligencia os sistemas populares de cuidado.
Raquel Marin, uma das autoras da pesquisa, contou mais detalhes do artigo.
O que os motivou a pesquisar o tema?
Historicamente, a fé e a espiritualidade são consideradas elementos fundamentais para o desenvolvimento e o bem-estar das pessoas, que se aproximam desses elementos com curiosidade e certo misticismo.
Diversos motivos, além da curiosidade, fizeram com que eu me aproximasse das benzedeiras e das práticas de cura populares. O primeiro deles está relacionado à minha história de vida. Cresci em uma pequena cidade do interior de São Paulo, com forte influência rural, e onde as benzedeiras e as práticas de cura populares pela fé são muito comuns.
Esse é um cenário que me acompanha e que me fascina desde criança: era maravilhoso entrar em contato com essa realidade à época e foi igualmente maravilhoso descobrir que eu poderia me envolver com esse tema também no meio acadêmico, por meio da pesquisa.
Outro fator que me fez conduzir esse estudo foi ter notado a eficácia e a permanência dessas práticas de cura populares, mesmo com o avanço da tecnologia e dos recursos “formais” de cuidado com a saúde. Desde muito nova ouço relatos de curas alcançadas e a respeito da figura das benzedeiras, o que despertou em mim, cada vez mais, a curiosidade sobre essas práticas milenares que perduram no tempo e se difundem em diferentes décadas, culturas e países.
A participação do Fabio Scorsolini-Comin no processo também foi um dos motivos que tornou possível a realização desse estudo tão significativo, pois sempre tive consciência de que ele trataria esse assunto com a seriedade e o respeito necessários. Estar engajada em um grupo de pesquisa que tem como uma de suas linhas os estudos sobre religiosidade e a espiritualidade também favoreceu a execução da investigação.
Quais os resultados que destaca no levantamento?
Acreditamos que a grande contribuição que surge como consequência dessa pesquisa é a divulgação das práticas populares de cura no meio acadêmico e a possibilidade de perpetuação das histórias e das trajetórias de vida e de desenvolvimento dessas benzedeiras. Muitas entrevistadas já se encontram em idade avançada e com complicações de saúde, e a maioria delas demonstrou preocupação com a possibilidade da extinção de seus conhecimentos, já que não encontram interesse nas gerações mais novas em continuar a “missão” das práticas populares de cura. Assim, o registro e a perpetuação dessas histórias são resultados que devem ser destacados.
Ao invés de tentar “provar” a eficácia de suas práticas de cura, nos preocupamos em demonstrar o processo de desenvolvimento dessas personagens tão importantes em suas comunidades, e os sacrifícios e ganhos pessoais que essas mulheres vivenciam para poder atender aqueles que as procuram em busca de ajuda.
Sumariamente, observou-se predomínio das benzedeiras mulheres nos bairros periféricos dos municípios, justamente onde se concentra a maior parte de pessoas com menor poder aquisitivo, e também aquelas que se mudaram de sítios para a cidade após muito tempo de convivência no ambiente rural.
Percebemos, ainda, que existe uma pluralidade de crenças religiosas entre elas, pois encontramos oito benzedeiras que professavam a fé católica, uma umbandista e uma evangélica. Vale ressaltar que quase todas as concepções de “dom”, “cura” e das próprias práticas populares mudavam de acordo com as crenças das entrevistadas e, apesar de professarem diferentes religiões, todas citaram a disciplina, o sacrifício pessoal, a fé em Deus e o desenvolvimento da espiritualidade. Além desses elementos, foram apontados como requisitos para ser uma benzedeira o dom para benzer, a vontade de ajudar os outros, a saúde física, o amor e a caridade.
Como sistemas populares de cuidado podem ser conciliados com os recursos hoje disponíveis?
Acredito que a conciliação entre os sistemas populares com os recursos hoje disponíveis, inclusive nos sistemas formais de cuidado com a saúde, seja possível e necessária. Contudo, defendo que essa conciliação precisa ser executada com cautela, para que ambos os modelos de cuidado não percam seus valores e que não vise a homogeneização das práticas de cura.
As práticas populares das benzedeiras são práticas culturais, religiosas, sociais e de saúde. Ocorre que o conceito de “saúde” que deveríamos ter em mente, em qualquer sistema de cuidado, é o conceito amplo e holístico de bem-estar do indivíduo que procura por ajuda e por cura. Nesse sentido, mesmo as práticas formais de cura, que contam com os mais avançados recursos tecnológicos e científicos, deveriam levar em consideração as esferas culturais, religiosas e sociais da saúde.
Assim, garantir o respeito e o reconhecimento dessas práticas populares de cura e das diferentes crenças é o primeiro passo para que essa conciliação seja feita com cautela. Além da noção holística de “saúde” que as benzedeiras pregam e propagam em suas comunidades, é indispensável que seja destacada a rede de apoio e acolhimento nas quais elas se constituem, que nem sempre estão disponíveis nos sistemas formais de saúde, ou não atendem as reais demandas da população.
As práticas populares de saúde de determinada região, na verdade, representam a própria identidade das pessoas que nela vivem. Os sistemas formais de cuidado poderiam, neste sentido, se aproveitar dessas concepções para aproximar o uso dos recursos tecnológicos e científicos mais avançados com as concepções partilhadas por essas comunidades.
Longe de tentar formalizar essa conciliação, propomos como essa conciliação deveria ser pensada, para que possamos aproveitar ao máximo os avanços tecnológicos e também resgatar práticas populares de cura, que acabam nos reconectando com nossas raízes culturais e sociais.
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