A nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada dia 10 de outubro de 2009 pelo Congresso argentino vem gerando debates.
As críticas foram encabeçadas pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que pede sua revisão por considerá-la “indício de deterioração da liberdade de imprensa nas Américas”, com consequências negativas “para a liberdade, a diversidade e a sustentabilidade dos meios de comunicação”.
Para o jornalista Venício A. de Lima, a lei é falsamente polêmica. “Ela foi amplamente debatida, passou pelo Congresso”, analisa. Após 200 alterações durante a tramitação, foi aprovada na Câmara dos Deputados daquele país com 146 votos a favor, 3 contra e 3 abstenções. No Senado, obteve 44 votos a favor e 24 contra.
O professor da Universidade Federal Fluminense, Dênis de Moraes, autor do livro A Batalha da Mídia, que trata das transformações políticas recentes na América Latina e analisa a comunicação como campo de lutas entre diferentes propostas hegemônicas, concede entrevista ao Federal sobre o tema. Ele avalia que a lei é uma das mais avançadas do mundo na regulação dos meios de comunicação.
1) Qual a avaliação que o senhor faz da lei?
A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina é uma das mais avançadas do mundo, atualmente, em termos de regulação democrática dos meios de comunicação. Elaborada por iniciativa da presidenta Cristina Kirchner a partir de consultas públicas a organismos da sociedade civil, visa coibir a concentração midiática, aumentar o controle público sobre a radiodifusão e diversificar as fontes de produção e veiculação.
2) No contexto de transformações na América Latina qual o significado da aprovação dessa lei?
Significa que é plenamente viável um governo progressista mobilizar e consultar a sociedade civil para que se alcancem marcos regulatórios democráticos no setor de comunicação. Isso depende, fundamentalmente, de vontade e determinação políticas tanto para se propor modificações profundas das leis vigentes quanto para obter apoio na opinião pública e conseguir aprová-las nos parlamentos.
3) A lei é reflexo dos governos progressistas da América Latina?
Sem dúvida. A América Latina vem passando, nos últimos anos, por mudanças políticas, econômicas e culturais conduzidas por governos eleitos com a bandeira da justiça social e da inclusão das massas em processos de desenvolvimento. Pela primeira vez, políticas públicas de comunicação são incluídas nas agendas de prioridades de vários países, com o propósito de deter a aguda concentração da mídia nas mãos de um número reduzido de corporações e diversificar os sistemas de difusão. As iniciativas, cujas intensidades variam de país para país, visam renovar marcos regulatórios, revigorar a comunicação pública, apoiar meios alternativos e comunitários e fomentar a produção audiovisual independente.
4) Quais são os pontos polêmicos da lei?
A lei engloba um conjunto de medidas de profundo sentido antimonopólico e descentralizador dos setores de comunicação e informação. Tem o apoio público e enfático de segmentos importantes da sociedade civil argentina, como centrais sindicais, Igreja, movimentos dos direitos humanos, universidades, associações profissionais, federação de jornalistas, artistas e intelectuais, entidades estudantis, etc. A sua aprovação pelo Congresso argentino é uma vitória da consciência democrática latino-americana. A polêmica a respeito da lei foi criada, deliberadamente, pela chamada grande mídia e pelas elites conservadoras, que repelem a democratização da comunicação e da vida social, pois isso implica perderem conveniências e privilégios históricos.
5) E quais os aspectos positivos?
A lei proíbe que licenças de rádio e TV sejam dadas a políticos e detentores de cargos públicos. Cada empresa só poderá dispor de, no máximo, dez concessões em televisão aberta ou a cabo (atualmente, esse limite é de 24 outorgas). O prazo das licenças será diminuído de 15 para 10 anos, com exigências mais rígidas para concessão e renovação de outorgas, sendo instituídas, obrigatoriamente, audiências públicas nos locais de prestação de serviço das emissoras para avaliar seus desempenhos. A lei inova também ao definir, em condições equitativas, três tipos de prestadores de serviços de radiodifusão: a gestão estatal (meios públicos), a gestão privada com fins lucrativos e a gestão privada sem fins lucrativos (organizações não-governamentais, entidades sociais, universidades, sindicatos, fundações). Para evitar a concentração dos meios locais, um mesmo concessionário não poderá operar mais de uma licença em freqüência de rádio AM e mais de duas em FM. O excesso de conteúdos estrangeiros nos veículos será coibido: no rádio, por exemplo, 30% do que for veiculado deve ser de origem argentina. Quando as emissoras funcionarem em cidades com mais de 600 mil habitantes, a produção nacional deverá responder por 60% da programação. A lei impede a propriedade cruzada dos meios: empresas de radiodifusão não poderão operar distribuidoras de TV a cabo em uma mesma localidade e vice-versa. A fiscalização das medidas caberá a um novo órgão de regulação, a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual, que terá poderes para aplicar sanções em caso de violação da lei, sob supervisão judicial. A Defensoria do Público receberá e apurará denúncias e reclamações relacionadas à mídia, além de representar os interesses do público e da comunidade, isolada ou conjuntamente, em recursos administrativos ou judiciais.
6) Sem generalizar, mas até pelo que o senhor expõe no livro, a chamada grande mídia não apoia os governos ditos progressistas. Essa regulamentação seria reflexo da briga entre a grande mídia e os governos progressistas?
Como salientei antes, os obstáculos às iniciativas democratizadoras no campo da comunicação encontram tenazes opositores nas elites políticas, econômicas e midiáticas. As corporações de mídia resistem a se submeter a restrições legais que afetem a autonomia conquistada em décadas de cumplicidade com sucessivos governos. Revidarão toda vez que forem arranhadas sua presunção de refletir a vontade geral e seus interesses políticos e suas metas mercadológicas.
7) Tentativas de instituir marcos regulatórios para as comunicações na maioria das vezes sofre pressões e são alvos de críticas de alguns setores. Qual o perigo dessa situação?
As resistências e pressões contra marcos regulatórios democráticos podem ser avaliadas nas campanhas orquestradas contra uma maior interferência do Estado, sobretudo, nos rumos da radiodifusão. Não é difícil entender o que se oculta no discurso enganoso da mídia em favor da “liberdade de expressão”: as outorgas de rádio e televisão constituem as jóias da coroa, em termos de faturamento, dos grupos empresariais. Daí a reação sistemática contra medidas legais que garantam equanimidade, lisura, transparência e fiscalização no regime de concessões de canais. Sob alegação de que exerce uma hipotética função social específica (informar a coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de contenção e se põe fora do alcance das leis e da regulação estatal, em favor de seus históricos privilégios. A opinião pública é induzida ao convencimento de que só tem relevância aquilo que os meios divulgam. Não somente é uma mistificação, como permite, perigosamente, a absorção de tarefas, funções e papéis tradicionalmente desempenhados por instâncias representativas da sociedade. A mídia sente-se desimpedida para selecionar as vozes que devem falar e ser ouvidas – geralmente aquelas que não ameaçam suas conveniências políticas e metas mercadológicas. O controle ideológico dificulta a interferência de outras vozes no debate de soluções para os problemas coletivos, já que se procura neutralizar visões alternativas e questionadoras, principalmente as que se opõem à supremacia do mercado como âmbito de regulação de demandas sociais.
8) Por fim, como o senhor enxerga a questão da regulamentação da mídia aqui no Brasil?
Trata-se de uma questão urgente e crucial. Não é possível que nosso país continue com uma das mais anacrônicas legislações de comunicação da América Latina. Estamos, lamentavelmente, na retaguarda do atraso. Isso também tem a ver com a inércia do governo Lula diante de problema tão grave. Em sete anos de seus dois dois mandatos, praticamente nada foi feito para modificar as leis que regem a radiodifusão, por exemplo. Continuamos submersos no que o professor Venício Lima chama de “coronelismo eletrônico” – a influência de interesses políticos clientelistas, claros ou dissimulados, no sistema de concessão de outorgas de licenças de rádio e tv. Penso que é essencial aumentar o grau de organização e de articulação de entidades e segmentos da sociedade civil que lutam pela democratização da comunicação, bem como buscar meios mais efetivos e conseqüentes de esclarecimento e convencimento da opinião pública sobre a relevância da comunicação para o desenvolvimento humano em bases igualitárias. Esses esforços me parecem decisivos, sobretudo para intensificar a pressão organizada de áreas reivindicantes da sociedade civil sobre os poderes públicos, e assim, no curso de persistentes campanhas e longas batalhas, construir, gradualmente, uma outra comunicação no país. Mas não percamos de vista que enfrentamos e enfrentaremos inimigos poderosos, inclusive ramificados nas instituições hegemônicas. Daí a necessidade de avançarmos também no plano das mobilizações e campanhas permanentes, tanto para exigir e cobrar providências aos poderes públicos quanto para esclarecer a opinião pública sobre a necessidade urgente de políticas públicas que protejam e promovam o interesse coletivo contra ambições monopólicas privadas.