Segue íntegra de entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 11 de dezembro de 2011:
Para Antonio Nery Filho, criador do 1º consultório de rua do país, dimensão da droga não justifica investimento. Ele critica plano de usar consultório de rua como porta para a internação involuntária, vista por ele como um retrocesso.
Andréia Sadi
Johanna Nublat
Idealizador do primeiro consultório de rua, mecanismo de abordagem de usuários de drogas encampado no novo plano do governo federal contra o crack, o médico Antonio Nery Filho critica o uso da atividade como porta para internação involuntária.
Essa possibilidade foi levantada pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha.
Professor na Universidade Federal da Bahia e coordenador do Cetad (Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas), Nery Filho relativiza o problema do crack em comparação a outras drogas.
Folha – Por que o senhor afirma que o crack não é o principal problema do país?
Antonio Nery – O crack foi alçado a uma posição na saúde pública brasileira que não corresponde à realidade. Sobretudo se comparado ao álcool, tabaco e medicamentos psicotrópicos usados fora do contexto médico e às substâncias voláteis.
O uso do crack se reduz a população específica. Não penso que se possa falar em “Brasil contra o crack” pois ele não tem uma dimensão que mereça o engajamento.
O sr. foi o idealizador do primeiro consultório de rua. Como vê o fato de a atividade ser incorporada ao plano do crack do governo?
De modo algum uma atividade pode ser incorporada a um plano para o crack. Seria muito mais eficaz um plano da maconha, cocaína em pó e, por que não, do álcool. Falar do plano do crack eu me recuso. A atividade que criamos na Bahia não é voltada para o crack e não deveria estar incorporada em um plano específico para uma droga, mas em um projeto de atendimento às pessoas que consomem drogas em situação de completa exclusão social.
Como foi criado o consultório?
Nós verificamos, em 1995, que havia na Bahia uma população que não tinha possibilidade de procurar um serviço de saúde por sua mais absoluta exclusão social.
Há pessoas que não têm a menor possibilidade de se mover na direção de qualquer coisa que não seja da morte. Nós constatamos, após dez anos trabalhando no Cetad, que essas pessoas nunca iam ao serviço e aí tivemos a ideia de criar um dispositivo com uma equipe multidisciplinar. Fomos onde essas pessoas estão.
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse que os consultórios de rua poderiam fazer o encaminhamento para a internação involuntária…
Se fizerem isso estarão deturpando completamente a ideia original. Eu me oponho totalmente que o consultório de rua se torne instrumento de internação compulsória.
Internações compulsórias nunca deram resultado nos últimos 50 anos. Nem para doentes mentais inteiramente psicóticos têm sido feitas.
Voltar 50 anos para fazer uma higienização das ruas das cidades brasileiras me parece um retrocesso para não dizer um absurdo do ponto de vista técnico.
Sabemos, após 30 anos trabalhando, que quando vamos para as ruas e nos tornamos o instrumento dessa internação compulsória, as pessoas fogem de nós como o diabo foge da cruz.
Vem agora uma proposta completamente anacrônica do Ministério da Saúde e propõe aquilo que nós todos da saúde mental mais abominamos (…) Deveríamos criar centros de atendimento psicossocial no lugar de dispor R$ 418 milhões para se enfrentar um fantasma criado artificialmente no Brasil.
O que difere a internação compulsória da involuntária?
A internação involuntária é igual à compulsória. Involuntária significa que a pessoa internada não aceita, então é compulsória. Alguém da lei decide, interpreta a lei.
E é uma interpretação errônea, porque a lei mudou e hoje a internação é um instrumento de recurso último.
Em nenhum caso o consultório de rua faria essa abordagem para, nos casos extremos, definir a internação?
Sou radical e frontalmente contra a internação involuntária, sobretudo de pessoas que usam drogas na rua e não estão psicóticas, não perderam a capacidade de entendimento e determinação.
O Estado brasileiro está dizendo que os usuários na rua são incapazes de decidir se querem ser internados.
Digo que 90% das pessoas que usam drogas se beneficiam bem do atendimento ambulatorial. Por que optar pelo mais caro, colocando essas pessoas em instâncias compulsoriamente?
Por trás disso tem o movimento das comunidades terapêuticas. A maioria é de caráter religioso. As pessoas não suportam rezar o dia todo e achar que Jesus vai substituir o crack, a cocaína, o álcool ou qualquer coisa do tipo.