A escalada de violência decorrente da ausência de policiamento nas ruas, intimamente ligada à falta de diálogo e a um processo paulatino de precarização, tornou refém a população capixaba nos últimos dias.
As (os) profissionais da Psicologia no Espírito Santo, em grande parte associadas (os) a órgãos públicos, vivenciam há tempos elementos da crise que agora se agrava no estado. “Não é apenas a categoria policial que vem sofrendo, mas todos os serviços públicos. O que desejamos não é a hierarquização de decisões despóticas, mas o diálogo. Não queremos procurar bandidos ou mocinhos, demonizando um ou outro lado, o que desejamos é o equacionamento de nossas problemáticas, e isto somente será possível pela negociação franca, aberta e democrática”. A avaliação é de Diemerson Saquetto, professor e presidente do Conselho Regional de Psicologia da 16ª Região (ES).
Para ele, a Psicologia em seus múltiplos aspectos pode contribuir com leituras para a saída da crise, a partir de conhecimentos teóricos e práticos, sobretudo nas áreas de Emergências e Desastres, Social e Comunitária. “Esperamos que, ao ser restabelecida a paz pública, possamos fazer alguma coisa a respeito, como projetos de atendimentos às pessoas que sofreram algum tipo de perda ou dano”, afirma.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou nota de posicionamento nesta quarta-feira (8), em que aponta que a superação da crise deve se dar para além de ações de controle pela força da violência e se solidariza com o povo do Espírito Santo, especialmente com as psicólogas e psicólogos do estado. A autarquia possui assento no Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), onde busca conferir visibilidade e aprofundar a relação entre Psicologia e Segurança Pública.
Confira abaixo entrevista completa com Diemerson Saquetto.
Qual leitura você faz desse quadro agravado da crise de violência no Espírito Santo? Quais as causas e suas possíveis consequências?
O Espírito Santo talvez vivencie sua maior crise política, social e econômica da história. O quadro de violência que se agravou nos últimos dias não é resultado de um par de decisões controversas, mas de uma série de sucateamentos que os aparelhos públicos vêm sofrendo ao longo de um já anunciado quadro de instabilidade e precarizações. Não é apenas a segurança pública capixaba que vai mal, mas temos uma saúde pública caótica, seguida da fragilização da educação e da desvalorização dos servidores públicos como um todo.
Pensar nas causas de uma crise nos impede de fazer uma análise binária e irresponsável, mas a hermenêutica de uma complexa gama de fatores conjunturais que levaram à fragilidade do Estado. Não podemos precisar uma causa, como que elegendo um bode expiatório, mas ficam eleitas como causas o conjunto de fatores anunciados, e alguns ainda a se anunciar com o tempo. Quiçá os mais proeminentes desses fatores sejam a falta de diálogo e as precarizações. Os profissionais da Psicologia ligados aos aparelhos públicos e órgãos de controle social têm sentido esta crise há muito tempo, em especial as (os) psicólogas (os) da saúde, da educação, da assistência social, dos direitos humanos, da segurança pública e do sistema socioeducativo. Pensar em consequências seria o mesmo que pensar a já colapsada e fragilizada rede de serviços.
Estamos presos em nossas residências, reféns de decisões que de algum modo nos escapam, fragilizam, despotencializam nossos corpos e afetos. As consequências já se fazem audíveis em nosso pedido de socorro cotidiano, e que acredito não nos afeta apenas como psicólogas (os) do estado do Espírito Santo, mas a todas (os) as (os) psicólogas (os) brasileiras (os). O desemprego e a insegurança, por exemplo, não são exclusividade dos profissionais do nosso estado.
Você entende que a crise tem chances de alcançar outras categorias profissionais?
Já alcançou. Os mais diversos setores e aparelhos públicos já vêm sofrendo há muito tempo. O que ocorre é que muitas vezes as greves dos profissionais da saúde e da educação passam despercebidas pela sociedade. O diferente da crise da segurança pública é que esta afeta a todos independentemente da sua classe social, enquanto a educação e saúde públicas precarizadas atingem as populações economicamente mais frágeis, e isto, às vezes passa despercebido pela mídia, ou é silenciado pelos governos.
Como a Psicologia pode contribuir particularmente para o entendimento de saídas para essa crise? O CRP vai fazer algo a respeito?
A Psicologia em seus múltiplos aspectos se coloca a serviço para a análise de conjunturas para a saída da crise, dispondo de arcabouço teórico e prático que pode ajudar na superação do momento em que vivemos. Todavia compreendemos que a Psicologia da área de Emergências e Desastres, assim como a Psicologia Social e Comunitária são as mais próximas desse campo de enfrentamento. Esperamos que, ao ser restabelecida a paz pública, possamos fazer alguma coisa a respeito, como projetos de atendimentos às pessoas que sofreram algum tipo de perda ou dano, nesta avalanche sem precedentes que atinge o Espírito Santo, ou outra medida que nosso colegiado do CRP e a Assembleia de Psicólogos acredite ser possível. Conclamamos a todas e todos psicólogas (os) capixabas a entrarem nesta luta e estarem mais próximas do Conselho. Reconstruir a sociedade e a categoria é uma urgência.
A população se encontra fragilizada, desprovida não apenas do sentimento de segurança, mas tenho presenciado os mais confusos sentimentos sendo propagados pelas mídias sociais: nossa humanidade tem sido, aos poucos, subtraída de nós. Com a fragilidade de um dos principais aparelhos repressores do Estado, a sede por violência tem se metastaseado em nossos lares. Os gritos de “bandido bom é bandido morto”, ou da violência a qualquer custo não podem subverter nossas mentes. Estamos à beira de um caos social, e em muitos casos atingidos pela paixão histérica vivida em certo frenesi. O sentimento é de desvelo, de não saber se poderemos sair de casa amanhã, se iremos para o trabalho ou escola. Certo é que prescindimos de tolerância e de temperança.
Profissionais da Psicologia brasileira, peço que se juntem a nós neste momento em que as (os) psicólogas (os) capixabas mais precisam, enviando-nos um pouco de seu afeto e de energia positiva. Psicólogas e psicólogos capixabas, vamos superar essa crise. E depois disso estaremos mais fortes para que, coletivamente e junto a outras categorias, possamos reconstruir um estado melhor, que todos desejamos. Temos de estar unidos enquanto sociedade e enquanto categoria, junto ao Sindipsi, juntos aos parelhos de controle social, juntos ao Conselho de Psicologia.