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28/09/2015 - 11:17

O racismo é, sim, promotor de sofrimento psíquico

Confira a entrevista com Valter da Mata, integrante da Comissão de Direitos Humanos do CFP

Valter da Mata, integrante da Comissão de Direitos Humanos do CFP, fala ao Jornal do Federal sobre os impactos do racismo na vida psíquica dos indivíduos e os desafios da Psicologia para enfrentar o tema. Para ele, que é mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), é preciso investir mais na formação de psicólogos (as) negros (as), além de assegurar a abordagem do assunto nas grades curriculares.

Confira a íntegra da entrevista.

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Quais são as repercussões psíquicas específicas resultantes da violência racial observadas na clínica de pacientes negros (as)?
Em se tratando de saúde mental, duas dimensões são atacadas diretamente: a identidade e a autoestima. Não possuindo referenciais identitários valorizados na nossa sociedade (heróis, pessoas bonitas, inteligentes) resta ao grupo subalterno se identificar com a sua “inferioridade natural” ou reivindicar para si um ideal de ego branco. Instala-se a baixa autoestima, valorizando-se pouco e acreditando que é inferior. Como consequências somáticas temos a depressão, o alcoolismo, a ansiedade, a autodepreciação, síndrome do pâ- nico. O quadro é complexo e requer certa experiência para se diagnosticar que essas manifestações podem advir da discriminação racial.

Em sua opinião, os (as) psicólogos estão preparados (as) para lidar com as questões raciais nos consultórios, ambulatórios e atendimentos de saúde em geral?
Eu acredito que os (as) psicó- logos (as) estão, em sua maioria, completamente despreparados (as) para lidar com essas questões. Diversos motivos conspiram para esse lamentável quadro. Destaco o histórico distanciamento da categoria com a população de baixa renda. As teorias utilizadas pela maioria dos profissionais de Psicologia são oriundas de países europeus ou dos Estados Unidos, propõem uma universalização do desenvolvimento humano e excluem completamente o legado cultural dos povos asiáticos, africanos e indígenas. Assim, as formas de subjetivação da população de baixa renda do Brasil, que tem forte influência das populações africanas e indígenas, podem ser vistas como patológicas, e as expressividades dos comportamentos também podem ser vistas como inadequadas. É preciso que os (as) psicó- logos (as) saibam que o racismo existe em nossa sociedade e afeta de forma decisiva a nossa forma de compreender o mundo. O racismo existente em nosso país atinge de forma distinta as pessoas a partir da sua cor de pele. Assim sendo, é fundamental para o profissional entender como o racismo atravessa a sua compreensão de mundo, assim como o racismo atravessa a subjetividade da pessoa atendida. O que vemos na maioria dos casos é uma completa ignorância em reconhecer o racismo enquanto vetor de promoção de sofrimento e, por conseguinte, a expulsão do tema racismo das consultas psicológicas.

A temática das relações raciais está presente na formação do (a) psicólogo (a)?Além de psicólogo sou professor de Psicologia e posso afirmar que, em raros casos, essa temática é abordada nas grades curriculares. Apesar de existirem as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que garantem a discussão das relações raciais em todos os níveis de educação, o que vejo é a completa ausência do tema nas instituições  de ensino superior – somando-se ao quadro a resistência dos alunos em discutir essas questões. As teorias que estudamos não trazem, na sua matriz, o reconhecimento da discriminação racial enquanto vetor, sendo então necessária uma releitura das mesmas para que o fenômeno venha a ser analisado de maneira adequada.

Como a temática das relações raciais está sendo tratada no panorama de grupos de estudos e pesquisas das universidades brasileiras?
Somente a partir do século XXI vemos maior preocupação da Psicologia brasileira com o tema das relações raciais. O livro “Psicologia Social do Racismo”, organizado por Cida Bento e Iray Carone, é quase um marco divisor nessa questão. Há um maior interesse no tema da Psicologia e Relações Raciais, os programas de pós-graduação de Psicologia da UFBA e da USP têm regularmente oferecido estudos que discorrem sobre essa problemática. Entretanto, na graduação, a resistência por parte dos professores é muito grande. É comum a pergunta, “como é que vou tratar esse assunto em minha disciplina?”, eu geralmente respondo que o racismo atravessa todas as dimensões da nossa existência, ele se materializa desde as relações afetivas, que norteiam nossas preferencias; até a noção pessoal e institucional de “boa aparência”, portanto é algo que não é distante da nossa realidade. O racismo nos atravessa em menor ou maior grau, temos que refletir o quanto ele nos afeta.

Qual o papel do Sistema Conselhos na batalha pela igualdade racial e também na conscientização da categoria para o atendimento adequado a essa população?

O Sistema Conselhos de Psicologia tem uma função importantíssima nessa questão. Primeiramente porque nosso Código de Ética é fundamentado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e o racismo é uma das formas mais odiosas de violação de direitos. Lembro que a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP) foi criada em 7 de agosto de 1997, e as Comissões de Direitos Humanos dos Conselhos Regionais (CRPs) a partir de 1998. Dentro dos objetivos e atribuições dessas comissões, estão incentivar a reflexão e o debate sobre os direitos humanos inerentes à formação, à prática profissional e à pesquisa em Psicologia, e estudar os múltiplos processos de exclusão enquanto fonte de produção de sofrimento mental. A atual gestão do CFP elegeu o combate ao racismo enquanto um dos eixos temáticos a serem trabalhados. Com a denominação de “Enfrentamento das violências associados ao racismo e a preconceitos étnicos”, esse eixo vem sendo trabalhado com grande afinco.

Fale um pouco sobre a inserção do (a) psicólogo (a) negro (a) no mercado. Esses (as) profissionais também são atingidos pelo preconceito?
Falarei um pouco da minha experiência pessoal enquanto psicólogo e homem negro. Foi muito comum ouvir a frase “Você não tem cara de psicólogo”, e eu sempre retrucava com

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a questão: “Qual é a cara do psicólogo?”. As respostas eram invariavelmente vazias. Esse tipo de pergunta vai à direção de que um (a) negro (a) não é o protótipo idealizado de um profissional de Psicologia. Ainda na pós-graduação, tive de ouvir de um (a) professor (a): “Não esperava nada de você”. Imagine você ouvir isso enquanto faz um mestrado. O que quero dizer com esse rápido depoimento é que, independentemente do seu diploma, você é negro e será discriminado. A sociedade é racista e essas práticas estão no nosso cotidiano. Práticas racistas podem vir de onde menos se espera, de outro negro, por exemplo – porque assim ele foi socializado e o racismo ainda ecoa fortemente em nosso imaginário. Para mim, os desafios maiores são formar mais psicólogos (as) negros (as), o que começaria a desmontar o protótipo e incentivar a denúncia e o combate cotidiano contra as práticas racistas. A educação é transformadora.

Qual é a importância da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra?
Ela foi efetivada? A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, em tese, deve garantir o atendimento psicológico a esta população. Entretanto, o que vemos é uma situação lastimável. É evidente o descaso dos gestores para efetivar qualificadamente essa política. E no quadro operacional, a resistência é gigantesca. O discurso de que não existe o racismo no Brasil, aliado à crença da democracia racial, tem se constituído em obstáculos quase intransponíveis. Participo de algumas capacitações para funcionários dos sistemas de saúde e da assistência e nunca vi nada diferente da sensibilização. Grande parte acredita também que, como a política de saúde é universalista, não haveria necessidade de se criar uma especial para a população negra. Grosso modo, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra vem sendo sistematicamente sabotada pelos gestores e profissionais da saúde. Os orçamentos destinados a essa política são pífios, e o quadro de pessoas para implementação, idem.

DICAS DE LEITURA

Psicologia Social do racismo, Maria Aparecida Silva Bento e Iray Carone. Editora Vozes

Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon. Editora EDUFBA

Afro-descendente: identidade em construção, Ricardo Franklin Ferreira. Editora Pallas

Tornar-se Negro, Neusa Santos Souza. Editora Graal

Ninguém atravessa o arco-íris: um estudo sobre negros, José Tiago Reis Filho. Editora Selo

Universidade Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves. Editora Recor

O Sortilégio da Cor, Elisa Larkin Nascimento. Editora Selo Negro