No mês que marca os 34 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) publicou na última sexta-feira (12) uma resolução que proíbe, de forma expressa, o acolhimento, o atendimento e o tratamento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas – em todo o território nacional. O documento é assinado por Marina Poniwas, presidente do Conanda e representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP) no colegiado.
De acordo com a normativa, a vedação estende-se a instituições que prestam serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso, ou dependência de substâncias psicoativas, em regime de residência, e que utilizam como principal instrumento terapêutico a convivência entre os pares.
A medida dialoga com a defesa histórica do CFP pelo tratamento humanizado, em liberdade e com presença da família e da comunidade nas formas possíveis de intervenção, com o objetivo de promover saúde mental. Na avaliação do CFP, a privação de liberdade sob a justificativa de um suposto tratamento coloca crianças e adolescentes em potencial situação de violências e violações de direitos.
“Essa é uma resolução histórica. Crianças e adolescentes estão em fase peculiar de desenvolvimento. Todas as experiências nessa faixa etária têm forte impacto sobre a construção de suas vidas e subjetividades. Diante da recorrência de violações perpetradas em ambientes asilares, é necessário avançar na proteção dos grupos mais vulnerabilizados. A Psicologia brasileira tem o compromisso ético-político com a defesa de todas as infâncias e adolescências”, destacou Marina Poniwas.
O que diz a resolução?
A Resolução Conanda nº 249/2024 faz um resgate dos principais marcos normativos, com destaque para a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescentes – ECA (Lei nº 8.069/1990) e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, da Assembleia das Nações Unidas de 1989, ratificada pelo Brasil.
De acordo com a resolução, o Poder Executivo deve identificar o contingente de crianças e adolescentes que estão em comunidades terapêuticas e, ainda, desenvolver um plano de desinstitucionalização para garantir o restabelecimento de seus direitos, bem como sua proteção e o seu devido atendimento em conformidade com as legislações vigentes.
Segundo a normativa, durante o processo de desinstitucionalização cabe às(aos) profissionais do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) adotar medidas que assegurem o acesso e a inclusão nas redes de proteção integral à criança e à(ao) adolescente; a orientação sociofamiliar e jurídico-social às famílias; a notificação aos órgãos competentes; e o acompanhamento em serviços laicos e que respeitem marcadores como identidade de gênero/sexualidade, raça/etnia, deficiência e outras eventuais vulnerabilidades.
Também fica determinada pela resolução do Conanda que a atenção integral desse público etário deve ser ofertada pelos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), os espaços protetivos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e a rede intersetorial, realizada no território e de caráter antimanicomial. O objetivo é garantir a manutenção dos vínculos familiares e comunitários, a partir da execução de políticas públicas de proteção social e promoção de direitos humanos.
Contribuições da Psicologia
O CFP tem uma atuação histórica no compromisso da Psicologia brasileira com a defesa do cuidado em liberdade, em consonância com a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001).
Uma inspeção nacional a locais de internação para usuários de drogas foi realizada em 2011, coordenada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos (CDH/CFP). À época, a ação ocorreu simultaneamente em 25 unidades federativas do país, resultando na inspeção de 68 unidades.
Em 2018, em parceria com o do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF), o CFP lançou o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – resultado de uma ação realizada nas cinco regiões do Brasil. Entre as violações identificadas nesses estabelecimentos estão o uso de trabalhos forçados e sem remuneração, violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual, bem como a internação irregular de adolescentes e o uso de castigos físicos.
Em 2020, o CFP posicionou-se contrário à resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) que versava sobre o acolhimento, em comunidades terapêuticas, de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência de álcool e outras drogas. Na ocasião, o CFP ressaltou que a Resolução Conad nº 3/2020 representava retrocessos em importantes avanços obtidos a partir da Luta Antimanicomial e violava direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No ano de 2022, em contribuição como amicus curiae na Ação Civil Pública que questionou a normativa, o Conselho Federal de Psicologia pontuou que a resolução do Conad implicava em uma reafirmação da Doutrina da Situação Irregular do Código de Menores (1979), paradigma que compreende crianças e adolescentes como objeto de controle e coerção do Estado, e não como sujeitos de direitos. No mesmo ano, o CFP reforçou sua posição contrária ao financiamento de comunidades terapêuticas com recursos públicos.
Com base em sua missão institucional (Lei 5766/1971) de atuar como órgão consultivo em matérias afetas à Psicologia, o CFP solicitou, em 2023, uma agenda de reuniões com pastas estratégicas do Governo Federal para apresentar seu posicionamento acerca do financiamento de comunidades terapêuticas. À época, a Autarquia destacou a necessidade de fortalecimento das políticas antimanicomiais e da defesa de um tratamento humanizado das pessoas com sofrimento psíquico causado pelo uso abusivo de drogas, tendo como perspectiva o cuidado em liberdade e o direito à convivência comunitária.