No dia 1º de outubro, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto nº 10.502 de 30/09/2020, do governo federal, que Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Na prática, o decreto modifica a atual Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, vigente desde 2008.
À primeira vista, o decreto pode parecer um avanço, ao colocar a possibilidade de escolha, por parte da família, do local onde a criança com deficiência pode estudar: em escola regular; em escola especial; ou em escola bilíngue, para pessoas que querem aprender Libras, a Língua Brasileira de Sinais. No entanto, não se trata de “escolha”, se trata da não garantia dos direitos da pessoa com deficiência, se trata de ferir a Constituição Brasileira (1988) que em seus objetivos fundamentais advoga “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e quaisquer outras formas de discriminação”.
As mudanças na Política de Educação Especial representam verdadeiro retrocesso e risco do retorno à segregação. No texto a seguir, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) explicita as razões de seu posicionamento contrário às alterações.
Um primeiro indício de retrocesso está no fato de que o referido decreto foi construído pelo Ministério da Educação (MEC) sem qualquer participação e consulta às entidades representativas do movimento das pessoas com deficiência, aos setores da sociedade civil, as pessoas com deficiência, aos familiares e às(aos) pesquisadoras(es) que investigam e contribuem para uma maior compreensão do complexo processo ensino-aprendizagem, dentre os quais estão a Psicologia e a Educação. A reiterada posição do governo de não dialogar com a sociedade, neste pleito em particular, vai contra um importante lema dos movimentos de pessoas com deficiência “nada sobre nós sem nós”, e aponta sinais de que o decreto não representa os anseios desta população.
Outro ponto problemático é a construção das salas de aula especiais. A partir da análise do documento, percebe-se que a proposta do decreto retrocede pelo menos 30 anos de conquistas e de direitos das pessoas com deficiência à educação e a um sistema educacional inclusivo, sem discriminação e com igualdade de oportunidades. Ou seja, retira das pessoas com deficiência o direito de estudar e de ter acesso ao currículo escolar dentro da escola regular inseridos nas classes comuns.
Esses direitos estão dispostos em diversas leis e tratados internacionais, como: a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2006, assinada por mais de 158 países – Incluindo o Brasil, que ratificou o documento ao incluir como emenda constitucional o § 3o do art. 5º da nossa Constituição Federal de 1988; a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), de 2008, que assegurou o direto das pessoas com deficiência estarem entre seus pares em uma escola para todas e todos; a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), Lei nº 13.146, de 16 de julho de 2016; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/1996); e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina aos pais ou responsáveis “a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”(Lei nº 8069/1990, art. 55)
Todos esses marcos legais partem do pressuposto de uma política de educação inclusiva, onde a educação especial deve ser vista como modalidade de ensino transversal. Isso significa que as atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado são complementares e, portanto, a formação de estudantes com deficiência devem ocorrer em sala de aula regular. Para isso, as escolas e os sistemas de ensino, por meio do Projeto Político-Pedagógico (PPC), organizam diversas estratégias para garantir o acesso e a permanência dessas(es) estudantes à sala de aula e a uma educação inclusiva e de qualidade.
A nova política instituída no Decreto nº 10.502, no entanto, apresenta-se contrária às políticas educacionais que asseguram a diversidade social e igualdade de oportunidade no ambiente escolar, pois ao estabelecer a educação especializada como uma modalidade escolar fragiliza os direitos das pessoas com deficiência e consolida a discriminação com o retorno de espaços segregados de educação.
Além disso, o referido Decreto, com o intuito de imprimir legitimidade e inovação ao texto, utiliza expressões que integram a gramática da inclusão e da diversidade, como “singularidades”, “especificidades” e “aspectos locais e culturais” desarticuladas de reflexões críticas sobre as práticas inclusivas. Essa nova política apresentada, portanto, distorce conceitos e conduz a interpretações que não reconhecem os avanços construídos a partir da PNEEPEI/2008.
Assumir um posicionamento contrário ao Decreto nº 10.502 é de extrema importância, pois vivemos em uma sociedade capacitista, onde as pessoas com deficiência são vistas e tratadas como incapazes, ineficientes e inferiores. Diante disso, o referido decreto, ao considerar uma suposta “escolha”, irá intensificar a segregação e a discriminação por meio de ações que impedem a construção de espaços de convivência pautados no respeito a diferença, a diversidade e a singularidade.
Desse modo, torna-se imprescindível promover práticas que assegurem os direitos básicos a uma educação inclusiva e de qualidade para todos. Por isso, a Psicologia brasileira tem constantemente em suas atividades buscado fortalecer a escuta e a participação das pessoas com deficiência, seus familiares, entidades representativas e conselhos de direitos. O que não ocorreu na construção do Decreto nº 10.502.
Ademais, o posicionamento do CFP contrário às mudanças consideradas no Decreto é embasado na histórica participação da Psicologia na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, assim como nos princípios do Código de Ética da profissional, que determina que psicólogas e psicólogos devem, em sua prática profissional, combater quaisquer tipos de violência, de exclusão, de opressão, de crueldade, numa perspectiva da garantia pela dignidade de trabalhar pelo bem viver.
Diante do exposto, o CFP entende que ainda há muito o que avançar para que o país tenha de fato uma educação inclusiva. Porém, tal avanço não será conquistado sem o atendimento às normas constitucionais, sem investimentos na formação e capacitação de docentes, sem a garantia de acessibilidade que garante a chegada e permanência nas instituições de ensino e, em especial, sem o compromisso com a defesa irrestrita de uma sociedade na qual a diversidade, em todas as suas dimensões, é entendida como expressão de vidas humanas e que estas importam.
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