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30/09/2016 - 16:56

Prevenção ao suicídio indígena exige conhecimento sobre a cultura e mediação, diz psicólogo

Tássio Soares ressalta necessidade de estudar a cosmologia do povo com que se trabalha e buscar atividades que quebrem o luto da aldeia como ponto de partida

Prevenção ao suicídio indígena exige conhecimento sobre a cultura e mediação, diz psicólogo

O desenvolvimento de atividades que quebrem o luto da aldeia e valorizem o potencial dos seus moradores é um ponto de partida apontado pelo psicólogo e gestor público Tássio Soares para a prevenção de suicídio entre populações indígenas. Uma prática na linha “pesquisa-ação”, em vez de uma intervenção abrupta com risco de ampliar a “contaminação” pelos casos ocorridos.

Soares, que foi responsável pela equipe do Programa de Saúde Mental do Distrito Sanitário Especial Indígena do Tocantins (Dsei-TO), destaca a diversidade de fatores que podem estar envolvidos e a necessidade de considerar e respeitar as diferenças culturais. “Mesmo fora dos territórios geográficos desses indígenas, os profissionais que venham a atendê-los devem ter um tempo para conhecer melhor sobre a origem, sua cosmologia e reconhecer as especificidades de suas demandas”, diz. Ele avalia que a fundamentação relativa a acolhimento e a Psicologia comunitária tem sua importância, mas em certos momentos o papel que cabe ao (à) profissional é o de mediador (a) entre aquela população, as instituições e a sociedade envolvente.

Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2015 foram registrados 87 casos de suicídio entre povos indígenas em todo o país, 45 deles no Mato Grosso do Sul (MS). De acordo com levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 2011 esse estado e o Amazonas (AM) concentraram cerca de 81% dos casos. O documento mostra taxa de suicídios de 32,2 em cada 100 mil indígenas no AM, seis vezes o índice nacional (geral); no MS, um índice ainda maior: 166 suicídios para cada 100 mil indígenas, mais do que 34 vezes a média nacional. O estudo constatou um quadro ainda mais grave entre os jovens: 101 suicídios por 100 mil indígenas no estado da Região Norte e 446 no da Centro-Oeste.

“O risco é uma relação perversa, em que somente essas situações extremas dão alguma urgência para os problemas existentes”, alerta o psicólogo, que pesquisou, em sua especialização, a atuação do Poder Público diante do fenômeno. Ele também foi tutor do Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde), na temática Rede de Atenção à Saúde Indígena, vinculado à Universidade Federal do Tocantins (UFT) e ao Dsei. No Centro Regional de Referência sobre Drogas do Norte do Tocantins (CRR-Norte) abordou, como professor, o consumo de álcool e outras drogas entre essas populações. Leia a entrevista do colaborador do Conselho Federal de Psicologia (CFP).

Sua especialização em Gestão Pública e Sociedade teve como tema “A atuação do Poder Público frente ao comportamento suicida entre os indígenas da Ilha do Bananal”. Pode comentar sobre a realidade desse local e a ocorrência desse tipo de violência?

A Ilha do Bananal é uma ilha fluvial, a maior do mundo, que abriga terras indígenas e um Parque Nacional. Na terra indígena moram pessoas de vários povos, principalmente das nações Javaé e Karajá, ambas de tronco Iny. Por um preciosismo meu prefiro não comentar em entrevistas os números sobre o comportamento suicida na Ilha. O fato é que é um problema que atinge esses povos e sua organização social. A violência autoinfligida nem sempre resulta em suicídio, mas esse comportamento já é carregado de significado entre os Iny. Para eles, de forma geral, este comportamento está ligado a feitiço e/ou xamanismo.

Como foi seu trabalho?

Foi um trabalho a respeito de todas as ações demandadas pelos vários órgãos de política indigenista naquela situação. Explorou essa concepção dos indígenas, mas tratou também de outras possíveis explicações. Apesar de eu ter tido vivência por um razoável período entre esses povos (mais com os Javaé), meu trabalho não se deu com pesquisas diretas. Nós buscamos, a partir de pesquisa documental, nos relatórios e registros de ações interinstitucionais de órgãos públicos, as causas do comportamento suicida ente os Iny, bem como os aspectos positivos e os aspectos negativos das ações realizadas pelo Poder Público, nas percepções tanto de indígenas como de não indígenas.

Os aspectos mais relacionados ao comportamento na minha pesquisa foram os que cito adiante e que agrupei da seguinte forma: transformações culturais; consumo de álcool; relações de parentesco, transição para vida adulta e conflitos conjugais e geracionais; suicídio e luto; feitiço e xamanismo. Observe que esses temas não são necessariamente motivadores do comportamento, mas na pesquisa eram bem presentes e eu discuti cada um deles.

O que o quadro local tem em comum com o encontrado em outros lugares com alto índice de suicídio, como a região de Amambai e Dourados (MS) e a de São Gabriel da Cachoeira (AM)? No que eles diferem?

Eu conheço pouco do caso dos Guarani Kaiowa, mas já fui a Dourados e conheço algumas pessoas que trabalharam por lá na época de surto (de suicídios). Sei que lá as coisas são um pouco diferentes, porque o conflito de terra existente não é um problema entre os Javaé e os Karajá, mas tive informações de algo relacionado ao baixo poder de consumo – tratado no filme Terra Vermelha (BirdWatchers – La Terra Degli Uomini Rossi, Itália/Brasil, 2008, dir. Marco Bechis) – que vejo que também encontra relação com os indígenas com quem trabalhei. Sobre os indígenas de São Gabriel da Cachoeira sei pouco, mas sei que é um contexto peculiar, muitas mortes são de indígenas citadinos (em contexto urbano) e usam como método de suicídio a ingestão de uma raiz venenosa. Lá, fala-se muito também sobre a problemática do consumo de álcool, mas aí tem de ver a significação que esses povos dão para o beber.

Nesse contexto, quais os desafios de atuação do (a) psicólogo (a)? Que papéis ele (a) pode exercer como pesquisador (a) e profissional?

O trabalho do psicólogo junto às populações indígenas tem seus desafios como outras atuações na Psicologia. Entendo que criar espaços de diálogo sobre essa prática e dar visibilidade às boas práticas, mostrando a importância e o lugar do psicólogo nesta atuação, já é um bom começo. O psicólogo não necessita estar em aldeias para trabalhar com indígenas, inclusive os que tenham tido comportamento suicida. É muito comum que os nossos indígenas busquem a cidade para acessar serviços de saúde, educação e assistência social. É importante notar que, mesmo fora dos territórios geográficos desses indígenas, os profissionais que venham a atendê-los devem ter um tempo para conhecer melhor sobre a origem, sua cosmologia e reconhecer as especificidades de suas demandas.

Quando comecei a trabalhar na Saúde Indígena, tive o prazer de conhecer o médico etnopsiquiatra Carlos Coloma, que hoje atua no Mato Grosso do Sul. Dr. Coloma disse algo que pude constatar na prática e no meu trabalho: a pesquisa junto aos povos indígenas não pode ser algo como uma observação. Ela deve nascer da prática, mas não como uma intervenção abrupta; ou seja, em vez de chegar fazendo um “diagnóstico comunitário”, deve-se buscar junto aos indígenas um tipo de atividade que eles queiram e, a partir dessa atividade, buscar elementos. Algo parecido com o que no meio acadêmico é conhecido como “pesquisa-ação”.

Uma amiga psicóloga, também indigenista, Thelia Maria Pinheiro de Santana, de Mato Grosso, costuma dizer que se, como psicólogos, nós não “arrancarmos” interpretações dos indígenas e ajudarmos a fazer com que outras pessoas não façam isso no relacionamento com os povos, já ajuda muito. Concordo com ela: nosso papel é de acolher, de ouvir, mas também de mediar e de afirmar junto aos indígenas sua autodeterminação e promover sua autonomia.

Que resultados se pode esperar da atuação de um (a) profissional da área nesse tema?

No meu trabalho junto a populações indígenas percebo que estas são pessoas de muitos potenciais e que precisam de espaços para ser revelados. Acho que percebemos o resultado do nosso trabalho quando conseguimos possibilitar este espaço. Essa lógica serve para o trabalho geral do psicólogo junto aos povos indígenas e, não diferente, serve ao comportamento suicida. Por exemplo, na época em que as coisas estavam extremamente graves entre os Karajá da Ilha, graças ao trabalho de mediação dos psicólogos com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai, do Ministério da Saúde), foi possível levar uma pajé xinguana para desfazer o feitiço. O trabalho de sensibilização das autoridades sanitárias fez com que a viagem dela fosse custeada e os índices de comportamento suicida caíram de forma relevante naquela região por um bom tempo.

A Sesai realiza ações de prevenção ao suicídio entre esses povos. Pode-se dizer que existe hoje uma estratégia nacional nesse sentido?

Sim. No ano de 2013, os psicólogos Lucas Nobrega e Fernando Pessoa estavam no Programa de Saúde Mental Indígena da Sesai e organizaram, com a contribuição de psicólogos dos Dseis (Distritos Sanitários Especiais Indígenas) de todo o país, um documento orientador para a atuação em Saúde Mental Indígena no contexto dos Dseis, que aborda a questão da pós-venção como estratégia de atuação nos contextos considerados de surto de mortes por suicídios.

O que sua especialização e sua experiência nas aldeias sugerem como recomendável para a atuação dos órgãos públicos na prevenção ao suicídio, seja entre os indígenas ou de modo geral?

A gente pôde perceber que algumas coisas devem ser feitas e outras não. Por exemplo, diagnóstico comunitário, nesses contextos, não ajuda muito, parece que faz reviver toda a situação e até intensifica esse clima de contaminação. É mais interessante fazer atividades que gerem vida na aldeia. Respeitando as peculiaridades de cada povo, atividades que busquem o sorriso das pessoas, quebrem um pouco o luto. E que através das atividades esse assunto possa ser transversal e a gente possa colher informações que ajudem a elaborar projetos e programas.

Uma das coisas é buscar os potenciais desse povo e trabalhá-los. Na minha experiência lá, os indígenas adoram jogar futebol, os meninos e as meninas. Em algumas aldeias há uma destreza muito grande com miçangas ou com uma fibra regional natural.  Então, acho que o nosso papel é buscar identificar essas potencialidades e ser mediador entre essas entidades e entre a sociedade envolvente e essa potencialidade dos indígenas. Todo conhecimento do psicólogo ajuda, todo arcabouço que se tem sobre acolhimento, sobre Psicologia comunitária também. Mas, às vezes, nosso papel em Terra Indígena é não ser muito psicólogo, é usar do nosso papel para que o indígena seja mais potencializado com sua identidade, com aquilo que ele se identifica, com a natureza, seus ritos, suas estruturas e assim vai.

O suicídio é o ápice da situação extrema a que alguém recorre quando se exaurem todas as possibilidades. No caso dos indígenas, é um problema posto e chama a atenção das autoridades, coloca essas demandas, muitas vezes subjetivas, coloca o Poder Público diante da necessidade de agir. Mas a gente corre o risco de entrar na relação perversa em que somente acontecimentos assim dão alguma urgência para os problemas existentes. Eu sempre falo: o que é prioridade na Saúde Indígena? É a vacinação, a imunização. Quando tem suicídio, ela não é mais tão prioridade. Porque (o suicídio) é um problema que parece se alastrar. É difícil ter um caso isolado, em comunidades pequenas. Isso mostra o quanto a gente precisa dar atenção a várias dimensões da nossa vida, ao que a gente chama de saúde mental ou que alguns povos indígenas chamariam de bem-viver.