Ficou lotada a sala de reunião do Conselho Estadual de Saúde (CES/RS) na tarde quinta-feira (26), quando foi discutida a política de saúde mental pretendida pela nova gestão.
O coordenador dessa área na Secretaria Estadual de Saúde (SES), Luiz Illafont Coronel, esteve presente no encontro, acompanhado do secretário-adjunto da pasta, Francisco Paz, para esclarecer as dúvidas dos conselheiros e público presente. Após duas horas de conversa, no entanto, a maior parte dos ativistas a favor da reforma psiquiátrica que foram até o local saiu frustrada pela falta de respostas.
Desde que a nova gestão assumiu o governo do Estado, militantes que defendem o fim dos “manicômios” e das internações a longo prazo estão apreensivos. Isso porque eles temem que a administração de Coronel volte a dar ênfase para os hospitais psiquiátricos. Algumas medidas — como o recente direcionamento dos cursos de residência da Escola de Saúde Pública para o Hospital São Pedro — têm aumentado a apreensão nesse sentido.
Falando em tom conciliador, Coronel foi até o encontro garantindo que “o compromisso da atual gestão com o programa de saúde mental do Estado é cumprir a lei”. Apesar de ser lei há mais de uma década, a reforma psiquiátrica ainda não foi plenamente implantada no país, o que causa o temor de que ela possa de alguma forma ser revertida caso algum gestor assim deseje. “Para executar esse programa, daremos um toque pessoal, próprio dessa gestão”, declarou o coordenador, dizendo que “as críticas são bem-vindas”.
Ele ainda afirmou que o “compromisso da gestão é com as pessoas que sofrem” e garantiu que “fechar, desmanchar não faz parte da nossa política”. A fala foi uma referência à preocupação de que alguns residenciais terapêuticos — casas de passagem para onde pacientes internados há muitos anos em hospitais psiquiátricos são mandados para serem ressocializados — alugados pelo Estado seriam fechados. Coronel apontou, no entanto, que o Estado recebe pouco recurso Federal para investir em saúde mental.
Questionamentos
A primeira a apresentar suas dúvidas para o coordenador foi Sandra Leon, do Fórum Gaúcho de Saúde Mental e membra da Coordenação de Saúde Mental do CES. Ela fez uma série de questionamentos ao novo coordenador, começando por “Qual o posicionamento do atual governo frente às diretrizes de saúde mental do Estado, tendo como marco as leis da reforma psiquiátrica?”; em seguida indagando se as verbas para residenciais terapêuticos e Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) serão mantidas, assim como para oficinas terapêuticas, equipes de redução de danos e acompanhamento terapêutico.
Outra dúvida foi de que forma será conduzida a política de desinstitucionalização dos pacientes que ainda vivem no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), administrado pelo Estado, e em unidades semelhantes, como o Colônia Itapuã, em Viamão. “Ouvimos falar pela mídia que serão reabertos leitos no Hospital Colônia Itapuã. Como a coordenação explica essa ação e como pode destinar recursos da pasta para espaços asilares e de segregação?”, cobrou, lembrando que há 1300 leitos para saúde mental em hospitais gerais.
Para completar sua fala, a usuária da rede de saúde mental, Sandra Maria Lopes, deu seu depoimento. Ela viveu no São Pedro por 10 anos e atualmente está em casa, sendo atendida pelo CAPS. “Um dia concluíram que eu não tinha condições de ficar numa sociedade, um juiz disse que eu era incapaz. E aí veio a reforma psiquiátrica, mas quando me disseram que eu ia sair do São Pedro eu não queria, tinha medo de viver fora”, relatou ela.
Após concordar em deixar o São Pedro, a antiga paciente explicou que hoje em dia não cogita voltar para hospital nenhum. “Gosto da loucura do dia a dia e não quero voltar para lá. Mas é importante dar condições para que os usuários de lá tenham direito a voz, a dizer o que sentem”, defendeu, falando da importância de investimento nos CAPS. “Queremos que eles continuem fortes para dar direito para as pessoas melhorarem fora e fora do São Pedro. Valorizo meu direito de ir e vir, porque eu sou louca mas sou feliz”, completou, sob aplausos do público presente.
A coordenadora da Rede de Saúde Mental em São Lourenço do Sul, Graziela Vasquez, trouxe a experiência de seu município, considerado pioneiro no assunto. “Temos uma história de cuidado em liberdade de 27 anos, onde viemos provando todo dia que dá certo e que não precisamos trancar em hospital psiquiátrico”, afirmou, contando que nos municípios do sul do Estado as pessoas “além de ocupar o CAPS ocupam as ruas, as praças, os serviços em geral”.
Para que isso ocorra, ela chamou atenção ao fato de que é preciso formar profissionais de diversas áreas e demonstrou preocupação com a residência em Saúde Mental descentralizada que acontece na cidade, questionando se existe o risco de que essas vagas sejam fechadas. Outra dúvida pontual foi levantada por Alexandra Ximenes, do Conselho Regional de Psicologia, que disse ter sido informada que as pessoas que vivem nos residenciais terapêuticos da Morada São Pedro agora não podem mais sair à noite.
Dentre as mais de dez falas com questionamentos e reivindicações, houve alguns outros depoimentos de usuários da rede de saúde mental. A jovem Jennifer, 15 anos, moradora de Santa Cruz do Sul, se emocionou ao falar do CAPS que frequenta: “Lá eu conheci pessoas que são espetaculares, me ajudaram muito mesmo. Eu só tenho a agradecer, porque sofri muito na minha vida. Quando eu conheci o CAPS eu não gostava, eu fugia, porque eu não queria tomar remédio, não queria conversar. Mas hoje eu vejo que o CAPS é muito bom pra mim. Eles puderam me ajudar e estão me ajudando até hoje. Vim para dizer que tem que continuar os CAPS”, disse, também sob aplausos.
Já Ivon Lopes, usuário da rede de saúde mental de Pelotas, lembrou que em sua cidade o hospital psiquiátrico já foi fechado e o atendimento em liberdade funciona bem. “Quando o hospital fechou, as rádios perguntavam ‘o que vão fazer com esses loucos, vão ficar todos na rua?’ Então o hospital fechou e aumentaram os CAPS e não teve problema nenhum. A gente está bem nos CAPS”, contou.
As colocações de Coronel foram criticadas por Claudio Augustin, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos (Sinsepe/RS), que disse que “esperava que o gestor de saúde mental apresentasse seu programa, mas não vi isso” e ainda apontou que “não existe isso de ter ‘um toque pessoal’, a administração pública tem que seguir a impessoalidade”.
“Construção em conjunto”
Ao voltar a ser o interlocutor, Luiz Coronel afirmou estar achando a reunião “muito importante”. “Independente do que se trate e da forma que será encaminhada, a construção deve ser feita em conjunto num clima de respeito às diferenças. Toda construção que houver será feito com a participação da sociedade. Essa é a marca da atual gestão”, garantiu.
Após sua fala, parte do público presente gritou “Respostas! Respostas!”, o que causou conflito entre os que pediram que Coronel tivesse seu direito de fala respeitado e aqueles que reclamavam de sua falta de objetividade. “Acho que nada vai acabar aqui, é apenas o começo da discussão”, amenizou a presidente do CES/RS, Célia Chaves.
O coordenador então reclamou que não seria possível debater “sem clima de respeito”. “Agradeço esse primeiro contato e espero que o segundo se dê com nível maior de racionalidade e com menos preconceitos com a classe que a gente representa”. Sandra Leon, que afirmou não ter tido seus questionamentos respondidos, disse que as perguntas serão colocadas em um ofício, encaminhado para a Secretaria.
A presidente do conselho pediu que a resposta seja dada por escrito e também apresentada no CES. “Tudo que é discutido, formulado na gestão é apresentado nesse conselho. Vamos marcar uma plenária para a apresentação dessas respostas. Esse assunto não termina aqui, a não ser que vocês desistam, o que eu sei que não deve acontecer”, apontou, encerrando a reunião.
CFP
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apoia o posicionamento do Conselho Regional do Rio Grande do Sul (CRP-RS) e acompanha com preocupação a política de saúde mental no estado. O CFP e o CRP-RS entendem que o posicionamento da pasta sinaliza um retrocesso nas conquistas da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216 de 2001).
“O CFP apoia integralmente a posição do CRP-RS e é solidário, pois não podemos retroceder nas políticas de saúde mental, privilegiando a internação, em alguns casos, compulsória, por uso de drogas”, declara a conselheira secretária do CFP, Maria da Graça Jacques. “Apoiamos uma política que respeite os direitos humanos, a cidadania das pessoas que tem sofrimento mental e/ou que são usuárias de drogas e lutamos por um atendimento integral e responsável por parte do estado. Em especial, um atendimento o mais próximo o possível do ambiente familiar que mantenha os laços afetivos com as pessoas de referência das mesmas”, explica.
* Fonte: jornal Sul21
* Foto: Filipe Castilhos