O Conselho Federal de Psicologia (CFP) atua e possui reconhecimento público nos espaços de defesa dos direitos de crianças e adolescentes – como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (FNDCA). A instituição tem sido solicitada a se posicionar em relação a um projeto de pesquisa que vem sendo divulgado, desde novembro de 2007, pelos meios de comunicação. Esse projeto, coordenado por pesquisadores da UFRGS e da PUC-RS, pretende estudar as causas da criminalidade e do comportamento agressivo de “50 adolescentes homicidas” (autores de ato infracional) e internados na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE) de Porto Alegre, por meio de mapeamento cerebral, estudo genético e testes psicológicos.
Vêm ocorrendo debates mediados pela imprensa envolvendo declarações dos pesquisadores responsáveis pelo projeto e de professores universitários, pesquisadores e pessoas participantes de movimentos sociais de defesa dos direitos da infância e adolescência. Apesar de termos solicitado aos pesquisadores responsáveis pelo estudo cópia do referido projeto, por meio do Ofício N.º 110-08/dir-CFP/2008 de 28/01/2008, reiterado pelo Ofício N.º 302-08/dir-CFP – 12/03/2008, ainda não tivemos acesso a ele e, portanto, não podemos emitir opinião definitiva sobre o projeto. Entretanto, em relação às informações veiculadas pelos meios de comunicação sobre a pesquisa em tela e, de forma geral, em relação a qualquer pesquisa sobre o tema em debate, faremos alguns comentários que julgamos necessários explicitando nossa posição a seguir.
Em primeiro lugar, ressaltamos a importância da pesquisa científica para o enfrentamento de problemas sociais e a necessidade de investimentos em pesquisas no âmbito da infância e adolescência. Contudo, chamamos atenção para o fato de que a ciência não é neutra e as pesquisas científicas estão inseridas em um contexto político-social- temporal. Sabemos que, em nome da ciência já foram cometidas atrocidades e que, para o próprio progresso da ciência, o que é feito em seu nome pode e deve ser discutido e questionado, dentro e fora da academia, tanto no que diz respeito aos efeitos que poderão advir dos procedimentos de pesquisa e das escolhas metodológicas quanto da responsabilidade social dos pesquisadores. Acreditamos que a sociedade brasileira preze os princípios democráticos e a formação cidadã, reconhecendo a co-responsabilidade de todos na construção permanente de um país melhor para todos. Portanto, a responsabilidade social e a ética também devem compor o pano de fundo das investigações científicas e da prática de cientistas e pesquisadores. Nesse sentido, desde 1996, os projetos de pesquisa propostos no país e que envolvam seres humanos, devem ser submetidos à apreciação de um comitê de ética em pesquisa a fim de proteger e garantir os direitos dos participantes. Por exemplo, as análises desses projetos de pesquisa levam em consideração a existência ou não de impacto positivo para os sujeitos que consentem em participar de um estudo experimental.
A história da Ética em Pesquisa nos remete à lembrança do uso arbitrário de seres humanos, em campos de concentração, campos de refugiados, prisões e situações institucionais diversas, nas quais as relações de poder e interesses ideológicos tiveram total prevalência sobre os direitos das pessoas. Muitas vezes, na atualidade, tais fatos são mencionados apenas como um “recorte histórico situado no passado”. Contudo, lembramos, que foi a partir da reação a esses fatos do “passado”, para que nunca mais viessem a acontecer, que se deu a construção da Ética em Pesquisa sob a ótica dos direitos humanos.
Sabemos também que, na atualidade, abusos perpetrados nas relações de poder não estão banidos. Se repudiamos tais fatos no passado, como não repudiá-los no presente?
Por qual ótica vemos as pesquisas feitas nas prisões, hospitais, centros educacionais e outros âmbitos semelhantes? As relações de poder, que estão presentes e atravessam tais pesquisas, são vistas de forma crítica, na atualidade? Os pesquisadores, detentores de saberes reconhecidos institucionalmente e pertencentes a classes sociais distintas daqueles que são os sujeitos das pesquisas – e, portanto, em posições de poder e de autoridade totalmente assimétrica em relação a essas pessoas – levam sempre em consideração tais questões (éticas) que atravessam o campo pesquisado? Existirá impacto positivo para os sujeitos que consentirão em participar do estudo? Ter-se-á rompido com o viés de tratar a ciência como campo de interesse apenas do pesquisador ou da instituição (acadêmica ou não) envolvidos? Em termos éticos e sob o ponto de vista de sua responsabilidade social, pode um projeto de pesquisa reforçar estereótipos?
Tendo feito os esclarecimentos imperiosos, expostos acima, apresentamos o posicionamento do CFP sobre as discussões assistidas na mídia com relação à temática:
Consideramos inadequado: (1) do ponto de vista teórico e legal, utilizar termos como ‘psicopata’, ‘sociopatas’, ‘mentes criminosas’ para se referir a todos os adolescentes autores de ato infracional. Tais expressões apenas reforçam estereótipos – como aqueles que já marcam os adolescentes privados de liberdade; (2) confrontar razões biológicas e genéticas com razões culturais e sociais, de forma polarizada, simplificando a compreensão de fenômenos complexos como é o caso das questões relacionadas à violência e responsabilizando unicamente o sujeito por atos violentos. Não por acaso, e em sua esmagadora maioria, tais adolescentes pertencem às camadas mais pobres da população.
Entendemos, também, que a pesquisa situa “o ato criminoso” como um fato individual, de responsabilidade do sujeito e não como um fenômeno extremamente complexo.
Nesse sentido, o Conselho Federal de Psicologia reafirma o seu propósito de defesa intransigente dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito e atores sociais que exigem respeito, especialmente em sua condição peculiar de seres ainda em desenvolvimento.