Em 2020, o Poder Executivo apresentou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020. Conhecida como a PEC da Reforma Administrativa, a proposta pretende alterar “disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”. Na prática, retira a proteção de trabalhadoras e trabalhadores, precariza os serviços públicos e ocasiona prejuízos à população que destes serviços necessita.
Diante desses fatos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), os Conselhos Regionais, a Federação Nacional dos Psicólogos (Fenapsi), a Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT), a Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso) e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (Anpepp) uniram esforços e lançaram uma campanha para debater os impactos da Reforma Administrativa para a sociedade e, também, para a Psicologia, alertando a categoria sobre os riscos da aprovação da PEC 32.
Entre as ações da campanha está um site especial para mobilização para que a sociedade pressione as(os) parlamentares a votarem pela derrubada da PEC. Além disso, na última quinta-feira (16), as entidades realizaram o seminário virtual “PEC 32: Reforma Administrativa: impactos nas Políticas Públicas e na Psicologia”.
Para aprofundar o tema e fazer uma reflexão sobre os efeitos da PEC para a Psicologia e as políticas públicas, o CFP entrevistou a presidente da SBPOT, Maria Nivalda de Carvalho-Freitas. Confira a entrevista:
CFP – Como a PEC 32 da Reforma Administrativa pode fragilizar a qualidade das políticas públicas de educação, saúde e assistência social e afetar a vida de psicólogas e psicólogos?
Maria Nivalda – A presente reforma avança no entendimento de que o papel do Estado deve ser mínimo, com cargos denominados como típicos de estado, propondo redução de direitos e fragilizando os vínculos de trabalho de cargos relacionados à educação, saúde e assistência, em que grande parte dos psicólogos atua. Quando se propõe a retirada de direitos de funcionários públicos que atuam nessas áreas e, consequentemente, de todos os psicólogos e docentes de Psicologia que atuam nesses serviços, a mensagem clara é de que o Estado não tem interesse na saúde, educação e assistência. Que o governo irá reduzir investimentos nas políticas públicas relacionadas a essas áreas, o que impediria que milhões de brasileiros tivessem acesso à educação de qualidade, à saúde e à assistência.
Nesse sentido, a reforma inicia um processo concreto de desinvestimento na qualidade e no atendimento dessas políticas para, num futuro bem próximo, dizer que o SUS, as universidades públicas, os serviços de assistência municipais, estaduais e federais não têm competência para essas ações e que elas devem ser exploradas apenas pela iniciativa privada.
Ainda que a livre iniciativa seja também um fundamento constitucional, as atividades de educação, saúde e assistência são serviços e fontes estruturantes para a diminuição das desigualdades sociais e para a construção de um país democrático. Qual o compromisso da iniciativa privada com os ideais de um país? O compromisso primeiro é com a sobrevivência financeira do negócio, vide o avassalador número de demissões de docentes das escolas e universidades privadas no país ao primeiro sinal de crise econômica.
CFP – Por que a categoria deve defender as políticas públicas?
Maria Nivalda – O 5º Princípio Fundamental de nosso Código de Ética (Psicologia) diz assim: “O psicólogo contribuirá para promover a universalização do acesso da população às informações, ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões éticos da profissão”. Então, defender as políticas públicas e garantir o trabalho dos profissionais que atuam nessas políticas, com autonomia e liberdade de expressão, é promover um exercício ético da profissão. É defender a universalização do acesso da população aos serviços da Psicologia, especialmente por parte das populações vulneráveis, isso requer a manutenção das condições de trabalho dos profissionais que atuam nessas políticas e, inclusive, a melhoria delas, não a retirada de direitos.
Não é a defesa de privilégios de categorias profissionais – como o atual governo e a grande mídia veiculam – é a defesa de serviços de qualidade para grande parte da população brasileira. Essa defesa faz parte de nosso código de ética. Não existem privilégios para psicólogos, professores e assistentes sociais que atuam no serviço público. Vejam os salários desses profissionais e os compare com os salários do que é considerado função típica de estado (cargos do sistema judiciário, do legislativo, etc.).
CFP – Com a proposta da Reforma Administrativa com viés na redução de despesas, quais categorias serão prejudicadas? A reforma ataca os privilégios de carreiras de Estado com maiores salários?
Maria Nivalda – O discurso de redução de despesas do Estado propõe cortes predominantemente em cargos que atendem políticas destinadas às populações mais vulneráveis. Nenhum corte é cogitado em serviços de defesa do Estado, no que é considerado atividade típica do Estado. Mas que Estado é esse? Como defender a livre iniciativa e a regulação do mercado com uma população de 27,2 milhões de pessoas (12,83%) em situação de pobreza, vivendo com cerca de ¼ do salário mínimo mensal? Como essas pessoas terão acesso à educação de qualidade, saúde e assistência sem as políticas públicas?
CFP – Como contribuir para que o trabalho possa ser digno?
Maria Nivalda – Nesse cenário de proposição de reforma administrativa, defendendo as condições de trabalho de todos, inclusive, dos servidores públicos. Pois defender o trabalho deles é defender a manutenção das políticas públicas.
CFP – Qual é o papel do Estado no bem estar da população? De que Estado precisamos?
Maria Nivalda – Precisamos da mediação de um Estado justo em que os interesses coletivos e a minimização das desigualdades sejam mais importantes e o fiel da balança em qualquer processo decisório de governo. Não é o mercado, com sua lógica meritocrática e incapaz de ver as diferenças descomunais de oportunidades, que tem condições de trabalhar para a diminuição das desigualdades. Tão pouco é um Estado que legisla para garantir os direitos das classes dominantes e que se arroga o direito de definir o que é valor, o que é belo, o que é normal em desrespeito à diversidade humana e cultural de nosso país.
Precisamos de um Estado que cumpra seu papel, que faça reformas administrativas para coibir abusos internos que têm gerado enorme insatisfação da população; que amplie a defesa dos direitos de todos; que estimule o desenvolvimento; e que possibilite a criação de um ideal de sociedade a perseguir: um ideal que vise a diversidade, a igualdade, a solidariedade (não a caridade, nem a piedade) – todos têm direitos a uma vida digna e não apenas a comer as migalhas que caem da mesa de quem tem o poder. Cada vez que as políticas do governo precarizam as condições de trabalho e fragilizam as políticas públicas elas roubam dos brasileiros a possibilidade de sonhar, de criar… nos reduzindo a condição de meros sobreviventes. Acorrentam sonhos e pessoas quando lhes tiram os direitos de acesso com qualidade a serviços de saúde, educação e assistência, principalmente em um país com tamanha desigualdade social. Essa qualidade depende de uma gestão adequada das políticas com valorização do trabalho, com critérios claros de desempenho, etc. E não da fragilização dos vínculos de trabalho.