O Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou, nesta quinta-feira (31), nota de posicionamento na qual alerta para os possíveis impactos psicológicos, sociais e ambientais decorrentes da adoção do marco temporal para demarcação das terras indígenas. A tese do Marco Temporal está em julgamento pelas(os) ministras(os) do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na avaliação do CFP, a adoção do marco temporal para terras indígenas pode acarretar consequências psicológicas e sociais, tais como, o desenraizamento, a ruptura de laços e o apagamento da identidade coletiva dos povos originários.
O Conselho Federal de Psicologia destaca que a eventual definição de um critério temporal de repercussão geral para demarcação dessas terras constitui ruptura de direitos dos povos originários que foram conquistados ao longo das últimas cinco décadas no país e no mundo.
O CFP ressalta a importância de conduzir os processos de identificação e demarcação das terras indígenas conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988, sem a imposição de critérios temporais de repercussão geral, de acordo com o relatório do ministro Edson Fachin, do STF.
O posicionamento tem como base as reflexões de profissionais da Psicologia que pode ser encontrados no material publicado em 2022 pelo Conselho Federal de Psicologia “Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) junto aos Povos Indígenas”, lançado pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas. No âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia, o CRP 06 (SP) publicou o livro “Psicologia e Povos Indígenas”, em 2010, versando sobre a mesma temática.
Neste mesmo sentido, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) lançou uma cartilha, editada sob o ponto de vista dos próprios indígenas, com informações sobre o impacto do marco temporal. O material pode ser encontrado no website (abipoficial.org).
O que é marco temporal
A tese do marco temporal preceitua que a demarcação de terras indígenas esteja condicionada à presença dessas populações em seus referidos territórios na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, sob o argumento de que a legislação não atingiria situações anteriores à edição da Carta Magna.
Além de violar a Constituição Cidadã, a proposição de um marco temporal viola também uma série de compromissos e acordos internacionais assumidos pelo Brasil – como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Acordo de Paris e o Protocolo de Kyoto.
Confira a íntegra da Nota
Nota sobre o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n° 1017365 (marco temporal)
I. OBJETIVO
Fundamentar, a partir do referencial teórico da Psicologia Ambiental, sobre os possíveis impactos psicológicos, sociais e ambientais decorrentes da adoção de critério temporal de repercussão geral para demarcação de terras indígenas em julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n° 1017365.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Leis
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República.
Lei n. 5.766, de 20 de dezembro de 1971. Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências.
Decreto n. 79.822, de 17 de junho de 1977. Regulamenta a Lei nº 5.766, de 1971.
Normativas
Resolução C.F.P. n. 10, de 21 de julho de 2005. Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo.
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região (2010). Psicologia e povos indígenas. São Paulo: CRPSP.
Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (2022). Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) junto aos Povos Indígenas. Brasília: CFP.
III. INTRODUÇÃO
O Conselho Federal de Psicologia vem a público manifestar-se em relação aos impactos potenciais que a adoção da chamada Tese do “Marco Temporal” poderia acarretar aos processos demarcatórios de terras indígenas, com consequências psicológicas e sociais (como o desenraizamento, a ruptura de laços e o apagamento da identidade coletiva dos povos originários) e para a garantia dos direitos dessa população.
A Tese do “Marco Temporal” preceitua que a demarcação de terras indígenas fique condicionada à presença dessas populações em seus referidos territórios na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, sob o argumento de que a legislação não atingiria situações anteriores à edição da Carta Magna.
Inclui-se, como justificativa para o uso atual da tese, as 19 condicionantes adotadas no julgamento da ação popular contra a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, ocasião em que postulou-se, pela primeira vez, a questão do marco temporal. Contudo, cabe destacar que a utilização da tese no caso Raposa Serra do Sul não previa uma repercussão geral, proposição que ganhou impulso durante o governo Michel Temer, na esteira de uma série de ataques políticos ao Estado Democrático de Direito.
Desde então, a generalização dessa tese vem sendo explorada nas demais ações que envolvem demarcação de terras indígenas, como é o caso do Recurso Extraordinário (RE) nº 1017365, atualmente em análise no Supremo Tribunal Federal (STF).
O governo de Santa Catarina, por meio desse RE, utiliza a tese para questionar a ocupação da terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, com a alegação de que cerca de 80 mil metros quadrados ocupados pelos Xokleng não eram ocupados por eles na data da promulgação da Carta Magna. Por outro lado, os Xokleng argumentam que essa desocupação ocorreu em virtude de perseguições impostas para que dessem espaço aos colonos europeus no interior do estado.
A discussão do mérito no caso em tela ganhou destaque, considerando a definição do STF de que a decisão servirá de modelo para futuras ações sobre demarcação de terras indígenas. O processo, no STF, teve como relator o Ministro Edson Fachin, que se manifestou de forma contrária à tese do marco temporal. Em seguida, o Ministro Nunes Marques se opôs ao voto do relator e defendeu posição favorável à tese.
A análise sobre a constitucionalidade da tese do Marco Temporal estava suspensa desde junho deste ano, quando o ministro André Mendonça pediu vistas ao processo. Dessa forma, o julgamento foi retomado nesta quarta-feira, dia 30, com o voto favorável do ministro. Com isso, o julgamento se encontra empatado, com dois votos contrários à tese do Marco Temporal (Ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes) e dois votos favoráveis (Nunes Marques e André Mendonça). O STF retoma o julgamento nesta quinta-feira, 31, restando os votos de sete ministros: Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
IV. FUNDAMENTAÇÃO
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) é uma autarquia federal, dotada de personalidade jurídica de direito público, criada por meio da Lei nº 5.766/71, destinada a orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo e zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe.
Conforme estabelece a referida Lei, faz parte da competência deste Conselho Federal servir de órgão consultivo em matéria de Psicologia, bem como expedir as resoluções necessárias ao exercício profissional, pautado pela ética e cientificidade que regem a Profissão.
De partida, cabe situar o lugar do qual nos manifestamos a respeito do tema em questão. A Psicologia Ambiental constitui-se como subárea da Psicologia, e compõe – como disciplina independente – o campo interdisciplinar dos estudos pessoa-ambiente (Sommer, 2000), em conjunto com Arquitetura, Planejamento Ambiental e Geografia. A partir dos anos 1970, com o crescimento do interesse social pelas questões ambientais, passa então a aportar reflexões e conhecimentos sobre relações entre pessoas e ambientes naturais, em interface com áreas emergentes como a Educação Ambiental e a Ecologia.
Assim, segundo Enric Pol (2007), a Psicologia Ambiental tem como objetivo atuar sobre o comportamento de indivíduos, grupos, e da própria sociedade em prol do meio ambiente, melhorando as condições sociofísicas, fomentando um melhor convívio com o meio ambiente e o bem estar social, contribuindo para o avanço em direção à sustentabilidade, compreendida como um novo valor social positivo.
Trata-se de uma psicologia contextualizada (Wiesenfeld, 2001), voltada à compreensão e análise das problemáticas humano-ambientais, considerando os elementos desse binômio de forma holística e interdisciplinar. Reforçamos, junto à autora, a dimensão social nas transações entre as pessoas e seus ambientes e, sobretudo, a relevância do protagonismo dos atores sociais como intérpretes de suas situações, necessidades e ações, e como gestores das condições necessárias para melhorar suas condições de vida.
Vale ressaltar que na América Latina e, mais especificamente, no Brasil, a Psicologia Ambiental ganha contornos bastante específicos. Como observaram Farias, Olekszechen e Brito (2021), nossa vocação como área emergente no sul global parte da crítica do modelo hegemônico de desenvolvimento, que incide de forma ainda mais acentuada sobre grupos culturalmente diferenciados, como os povos originários. Ao atentar para as tensões locais como expressões de problemáticas globais, busca-se lançar luz sobre processos de resistências em territórios assolados por “incessantes processos de expansão de fronteiras” em meio a “contextos societários de conflito” (Little, 2002, p. 4).
É a partir desta perspectiva que dirigimos nossa atenção às demandas e à compreensão das experiências históricas de territorialidades indígenas, assim como suas implicações subjetivas e psicossociais. Nesse contexto, destacamos a publicação recente das Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) junto aos povos indígenas (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas, CREPOP, 2022), como um esforço, por parte do Conselho Federal de Psicologia (CFP), em prover aportes teórico-metodológicos para a atuação profissional.
V. ANÁLISE
Inicialmente, há um problema hermenêutico na estrutura fundamental da tese, tendo em vista que se vale de uma interpretação equivocada do texto da Constituição Federal. A afirmação constitucional é de que os povos originários teriam direito a suas terras de ocupação tradicional. Por “ocupação tradicional” o texto de 1988 refere-se a terras ocupadas de modos tradicionais e diversos em suas manifestações históricas, de acordo com processos próprios de territorialidade dos diferentes povos indígenas considerados. Para tanto, uma série de critérios técnicos e estudos histórico-antropológicos dão fundamento aos processos demarcatórios, de modo que as terras de ocupação tradicional se constituem como o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, de direitos originários assegurados a tais povos graças a seus modos tradicionais de ocupação do território. Por originário, tal direito à demarcação territorial corresponde ao entendimento constitucional do Estado de que aos povos indígenas, originariamente ocupantes do território onde hoje se encontra o Brasil, cabem direitos que predatam a própria constituição do Estado-nacional. Sendo assim, não há respaldo científico, histórico-antropológico nem jurídico, que possa estipular a data de 1988 como surgimento ou consolidação de um direito dos povos indígenas — a demarcação de seus territórios — posto ser este um direito originário. O Ministro Edson Fachin corroborou esse argumento ao afirmar que “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 e independe da configuração de renitente esbulho”.
Além de violar a Carta Magna no âmbito nacional, vale salientar que a proposição de um marco temporal viola também uma série de compromissos e acordos internacionais assumidos pelo país como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Acordo de Paris e o Protocolo de Kyoto.
Além das violações jurídicas e internacionais, a demarcação de terras indígenas condicionada por critério temporal ignora o histórico de violência e marginalização sofrido historicamente por esses grupos ao desconsiderar que os povos originários foram reduzidos em virtude de epidemias e assassinatos ou foram deslocados forçosamente de seus locais de origem ao longo dos anos.
Dessa maneira, se mantida a tese, se privilegiariam os fatores que historicamente reduziram, cercearam, deslocaram e, sobretudo, assassinaram essas populações. Por consequência, as terras originárias ocupadas de modo escuso pelo garimpo, pela agropecuária e pelo extrativismo, por exemplo, seriam transferidas oficialmente para esses mercados, alterando sua pertença primeira e dificultando ainda mais garantir o direito à terra para os povos originários. Facilitar-se-ia ainda, o início de novas disputas, inclusive em terras pacificadas, tendo em vista que se poderiam invadir terras indígenas e impulsionar ações de expulsão dessas populações por meio de ações na justiça.
A proposição do Marco Temporal, nos faz revisitar a história deste país que sempre negou e invisibilizou a existência dos povos originários e toda a sua pulsão cultural.
Denota-se que o Estado, o sistema capitalista desenvolvimentista e o Imaginário Social estigmatizante produziram e ainda seguem produzindo violências e violações gravíssimas. Podemos citar os planos genocidas, etnocidas e de ecocídios que estão em ação há mais de 500 anos, tais como: o processo colonizador – Invasão do Brasil; a política educacional civilizatória; o Modelo Integracionista do Serviço de Proteção ao índio (SPI); os projetos “desenvolvimentistas” de grandes impactos; e Políticas Públicas inadequadas às especificidades. Todos eles aspectos que se atualizam em nova violência aos povos originários: o Marco Temporal.
Logo, está posto um movimento que tende a homogeneizar a pluralidade existencial dos povos indígenas, e privar a Pessoa indígena do seu direito à autonomia e liberdade de ir e vir, à medida que se lhes delimitam Quando, Como e Onde podem subjetivar a sua Etnicidade. Consequentemente, geram-se agravos de natureza psíquica, social, espiritual e ambiental para tal população, pois tais perspectivas fragilizam a convivência comunitária e a construção do pertencimento, põem em questão a própria Identidade, geram adoecimentos e violências de causas exógenas e endógenas, conflitos geracionais por apagamento do direito à memória, e promovem mortes simbólicas e reais com o desraizamento.
Os povos indígenas são coletivos de resistência, com capacidade de agência, cuja organização social e cultural precisa ser subjetivada em um território. Neste sentido, negar o direito ao território é nítida violação de direitos, pois é negar à Pessoa Indígena o seu direito à vida.
Por fim, há um problema ambiental premente tendo em vista que a demarcação de terras indígenas também preserva o meio ambiente e os distintos biomas do território brasileiro. Ao longo da história, as terras indígenas têm desempenhado um papel fundamental como sumidouros de carbono, além de atuarem como áreas efetivas de proteção da biodiversidade e de manutenção de processos e serviços ecossistêmicos. Muitos estudos científicos já comprovaram esses benefícios, reforçando assim a responsabilidade da sociedade em proteger e preservar essas áreas. Ao facilitar o questionamento sobre seus limites, a sociedade brasileira põe em risco também o futuro ambiental, que é, ele mesmo, o futuro da própria sociedade.
VI. CONCLUSÃO
O posicionamento expresso na presente nota, em consideração à adoção de critério temporal para demarcação de terras indígenas, tem como base as reflexões de profissionais da psicologia, indígenas e não indígenas, que convergem no apoio e na luta pela garantia dos direitos desses povos. Tal lastro, advindo de diferentes iniciativas e aproximações com a questão indígena, se encontra enunciado em documentos já produzidos pelo Sistema Conselhos de Psicologia. Destacamos o livro Psicologia e povos indígenas (CRP-SP, 2010) e, mais recentemente, as Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) junto aos Povos Indígenas lançado pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP, 2022). De acordo com este último:
O direito ao território muitas vezes parece ser incompreendido por “não indígenas”, de modo que setores mais conservadores atacam dizendo que “há muita terra para pouco índio”. O tamanho das terras indígenas não é mensurado dessa forma, pois não se trata de uma lógica de propriedade, mas de envolvimento e ancestralidade, rompendo com os próprios limites entre o que a ciência considera humano e não humano, sujeito e ambiente, natureza e cultura (CREPOP, 2022, p.73).
Compreendemos, assim, que a defesa da autodeterminação e da garantia dos territórios é a defesa do Bem Viver dos povos indígenas, de suas culturas, suas línguas, suas lógicas e cosmovisões. Desse modo, o CFP compreende que a eventual definição de um critério temporal de repercussão geral para demarcação de terras indígenas constitui ruptura de direitos dos povos originários que foram conquistados ao longo das últimas cinco décadas no país e no mundo. Por esse motivo, o CFP ressalta a importância de conduzir os processos de identificação e demarcação das terras indígenas de acordo com o que é estabelecido na Constituição Federal de 1988, sem a imposição de critérios temporais de repercussão geral, em concordância com o estabelecido pelo relator, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin.
VII. REFERÊNCIAS
Farias, T. M., Olekszechen, N., & Brito, M. A. M. (2021). Relações Pessoa-Ambiente na América Latina: Perspectivas críticas, territorialidades e resistências. Florianópolis, SC: Abrapso Editora.
Little, P. E. (2002). Territórios Sociais E Povos Tradicionais No Brasil: Por Uma Antropologia Da Territorialidade. Anuário Antropológico 28 (1), 251-90. https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/6871.
Pol, E. (2007). Blueprints for a History of Environmental Psychology (II): From Architectural Psychology to the challenge of sustainability. Medio Ambiente y Comportamiento Humano, 8(1 e 2), 1-28.
Sommer, R. (2000). Discipline and field of study: a search for clarification. Journal of Environmental Psychology, 20, 1-4.
Wiesenfeld, E. (2001). La problemática ambiental desde la perspectiva psicosocial comunitaria: hacia una Psicología Ambiental del cambio. Medio Ambiente Y Comportamiento Humano, 2(1), 1–19.