O auditório 12 da Universidade de Brasília (UnB) foi completamente lotado, na tarde desta quinta-feira (15/5), por estudantes, profissionais e parlamentares presentes na palestra do neurocientista americano Carl Hart, que veio ao Brasil para ministrar palestra sobre ciência, drogas e a superação de mitos, além de lançar seu livro “Um preço muito alto”.
Em Brasília, o evento foi uma organização da Comissão UnB.Futuro em parceria com a Faculdade de Biologia e a TV Ceilândia, com o apoio do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Segundo o coordenador executivo da Comissão UnB Futuro, Fernando Paulino, este foi o encontro com maior audiência já realizado.
Surpreso pela grande participação do público, o neurocientista Carl Hart iniciou sua fala compartilhando um pouco do que aprendeu durante sua última semana no Brasil, e, principalmente, nos seus últimos 24 anos de vida, em relação às drogas e temas afins.
Hart cresceu em um bairro negro na periferia de Miami, onde não só consumia e vendia drogas, mas também portava armas e roubava. Anos depois, tornou-se o primeiro professor negro de neurociência da Universidade de Columbia. Um dos principais motivos para sua virada, que lhe permitiu abrir os olhos para questões sobre discriminação racial, foi a educação que recebeu ao alistar-se no exército americano da década de 80, que estava em serviço na Inglaterra.
“Ao longo de minha trajetória recebi uma educação que desafiou meu pensamentos e me inspirou a estudar e fazer a diferença quando voltasse aos Estados Unidos”, relatou. E foi o que fez – dedicou-se, já na América, a pesquisas sobre drogas, e acabou tornando-se doutor em neurociência.
Uma das percepções que teve desde o início foi que a discriminação racial andava lado a lado com os preconceitos relacionados às drogas. “Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas condenadas pelo uso de crack é negra, mesmo não utilizando a droga mais do que os brancos”, disse.
Mitos
Muitos são os mitos que permeiam o imaginário social ao se falar de drogas e, durante a palestra, grande parte deles foi negada pelo neurocientista. É o caso do vício, que muitas pessoas acreditam surgir com a primeira dose. “Nenhuma droga que você usa apenas uma vez te deixará viciado. Isto exige vários engajamentos com a substância”, explicou Hart.
Os danos cerebrais causados pelo uso das drogas, segundo o pesquisador, é exagerado pela maior parte dos neurocientistas e pesquisadores. “Dados mostram que o desempenho cognitivo de usuários não está fora da normalidade, pelo contrário”, afirmou.A noção de que usuários de crack, por exemplo, só têm como objetivo outra dose da droga também foi desmistificada. Em pesquisa que realizou em sua universidade com alguns usuários, foi constatado que entre a droga ou uma nota de 20 dólares, os participantes preferiam o dinheiro em todas as ocasiões, sendo que a maioria o usava para outros fins que não a compra de drogas. “Isto vai contra a literatura científica, que diz que pessoas com danos cognitivos não conseguem se engajar em planejamentos de longo prazo”, disse.
Outro fato que desafiou seu pensamento foi o mito de uma sociedade livre de drogas, ideia embasada por ações e leis que acabam não resultando em avanços. “Nos EUA, os números não mudaram, mas hoje se gasta 26 milhões de dólares para acabar com as drogas. O resultado é que hoje o principal motivo para a prisão é por crimes relacionados às drogas, mas a maioria dos presos só é usuário e de maconha”.
Hart também citou o exemplo do Brasil, em que o crack é citado como o grande causador de impactos negativos nas favelas. “O crack nem existia há dez anos e os problemas já estavam lá. Isso nos diz que há outra coisa responsável pelo problema e as autoridades usam as drogas como desculpa”.
Em relação às comunidades terapêuticas, Hart afirmou não considerar um tratamento apropriado aos usuários viciados. “Não sei o que estão usando, mas entendo que há influencias religiosas e não possuem evidencias empíricas que revelam ser este um método adequado”, criticou.
Para reduzir os vícios e problemas causados pelas drogas, Hart defende a combinação da ciência com as políticas públicas, além da descriminalização de todas as drogas. “O tráfico de drogas pode ser processado como crime, mas garantimos, com a descriminalização, que há questões que a polícia não pode resolver sozinha. O espirito da lei tem que se refletir na educação”.
E por educação, Hart cita a importância de explicar melhor os efeitos das drogas à sociedade, o que inclui fatores como a dose adequada, a experiência de cada usuário e o ambiente de consumo. “São informações simples que ajudam a manter as pessoas em segurança e torná-los usuários verdadeiramente responsáveis. Entender estas pessoas e seus objetivos é importante para ajudar não só na elaboração de políticas, mas no acolhimento e tratamento. As pessoas podem ter problemas com drogas, e têm, mas com uma educação melhor podemos diminuir este índice”, concluiu.
Avaliação
Além de Hart, estavam presentes na mesa os professores da UnB, Renato Malcher e Andrea Gallassi, o coordenador da UnB Futuro Isaac Roitman, o decano de pesquisa e pós-graduação Jaime Santana e o coordenador da Comissão UnB Futuro, Fernando Paulino.
Para Renato Malcher, a amplitude de informações levadas por Carl Hart vai além da questão das drogas, mostrando como a formação científica de uma pessoa é influenciada por fatores históricos, culturais e religiosos.
Com suas vivências, Malcher percebe que, mesmo em um ambiente acadêmico, ainda há dificuldade em encarar novas perspectivas sobre determinados problemas sociais. “A trajetória do Carl Hart mostra a relevância de programas que fomentam a inclusão e trazem uma nova perspectiva para a ciência”, comentou.
A professora Andrea Galassi foi positiva sobre as discussões: “As pessoas estão sim buscando educação e sendo mais reflexivas sobre o tema. O caminho é longo e espaços como este nos animam a seguir adiante”.
O decano Jaime Santana também elogiou a iniciativa de pensar o futuro de assuntos relativos às universidades de forma geral, discutindo dados científicos e colocando a academia à frente das discussões com o público.