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27/06/2013 - 16:57

Entevista: Marisa Lopes da Rocha

Atuação profissional na educação básica em debate

Em maio, o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) lançou Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica – disponível aqui. O Jornal do Federal convidou Marisa Lopes da Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para comentar alguns dos principais pontos do documento. Rocha é pós-doutora em Filosofia e História da Educação (Unicamp) e em Psicologia Social (UFRGS). Trecho da entrevista será publicada na próxima edição do Jornal do Federal (n° 107). Veja aqui a entrevista na íntegra:

Jornal do Federal – Uma das questões colocadas pelo documento do Crepop é a reflexão sobre a função social da escola hoje. Como a percebe?

Marisa Lopes da Rocha – Vejo a escola como um território de experimentação que favorece misturas com muitos ingredientes, entre eles os saberes constituídos, os modos de vida, tradições e crenças diversos, o encontro entre gêneros, gerações. Esteio para a produção de novos conhecimentos.

JF – Em seu trabalho de extensão universitária em escolas e creches da rede pública, quais são os maiores desafios?

MLR – Problematizar a organização coletiva das práticas que dão consistência à vida escolar e, nesse sentido, as tensões, os conflitos, assim como os mecanismos que dificultam a mobilização e a gestão do trabalho por quem o exerce. Entre os principais efeitos encontramos que:

  • a (in)disciplina deixa de funcionar como analisadora das relações que a constituem, deixa de ser uma força que provoca reflexão e ação entre alunos e professores e destes sobre as circunstâncias de ensino, para se constituir como obstáculo;
  • a tensão implicada no processo de formação, generalizando-se na multiplicação de dispositivos de controle, deteriora as relações e adoece a comunidade educacional;
  • a escola se cristaliza em uma pluralidade de leis e abandona o enfrentamento do coletivo nas suas divergências, enfraquecendo a capacidade de negociação e os vínculos que tecem a rede social, passando a convocar diversos especialistas (psicólogo, médico, juiz) para resolver problemas;
  • a gestão e a organização do processo de trabalho escolar estão atravessados cada vez mais pela exclusão do professor, que não interfere nas regras de seu ofício.

 

JF – É possível questionar o pensamento que culpabiliza estudantes, familiares e professores pelos problemas nas escolas?

MLR – Sim, porém, é fundamental perceber que tensões e conflitos estão sempre presentes e são o investimento dos sujeitos na vida daquela coletividade, desafiando a lidar com as turbulências que se produzem a cada momento. É do difícil convívio com as inquietações e com as diferenças que a solidariedade pode vir a se engendrar enquanto sentido e ação comum que rompem com o isolamento, com os padrões, com a culpabilização em cadeia, aprisionando todos na lógica disciplinar. Em tempos de competitividade e autossuperação, autoempreendimento, as relações solidárias são um contratempo, exercício do que resiste ao tédio, ao isolamento, ao esvaziamento de sentido, podendo significar saúde.

 

JF – Dados do Crepop apontam como desafio cotidiano a desvinculação da(o) psicóloga(o) do trabalho clínico na Educação básica. Como lidar com ele?

 

MLR – Trabalhar na perspectiva de uma micropolítica de invenção da vida é abordar a educação levando-se em conta alguns deslocamentos que têm início no próprio lugar do psicólogo. Tradicionalmente, quando entramos em uma escola, acreditamos que nossa contribuição é mudar o outro, o professor que não sabe fazer ou a criança que não consegue aprender. O “olhar clínico do especialista” estendido ao professor produz casos problemas, o que falta àqueles que ali estão em cena. É importante ter claro que oferta e demanda de trabalho se constroem juntas. Quando nos chega um pedido, é efeito de um entre-nós educadores e psicólogos nas expectativas de papéis uns dos outros, nas relações estabelecidas. Nossos cursos primam pela construção da identidade profissional, formação daquele que sabe e que pode avaliar o grau de desvio, resolvendo problemas ou encaminhando-os. Esta é a lógica da medicalização, uma terapêutica de amplo espectro, tendo como denominador comum a classificação, a normalização e a hierarquia, inclusive para nós mesmos.

O primeiro deslocamento é o do próprio lugar, é o do nosso encargo social, ou seja, da identidade que nos confere saber, poder de curar, de resolver, ampliando a impotência e desimplicando os demais atores.

O segundo deslocamento está em girar dos casos às histórias, do problema ao campo problemático, do plano determinista naturalizado ao plano político em que é fundamental devolver ao social o que foi psicologizado: colocar uma lupa nas relações, nos modos de funcionamento, nas implicações entre as pessoas e destas com o trabalho que realizam. Aqui, convém significar o conceito de saúde: a capacidade dos coletivos em enfrentar imprevistos e adversidades, que nos põe a pensar, que nos faz engendrar maneiras de ser, usufruindo das habilidades em constituição para criar novas situações mais favoráveis à expansão de nossas vidas nos diferentes sentidos. E a questão que se coloca para nós está no que afeta as pessoas, implicando-as com o exercício da problematização, com a produção de outros sentidos de trabalho.

O terceiro deslocamento está no conceito de cotidiano. Normalmente entendido como repetição, da vida contida na agenda, cotidiano para nós é aberto, é repetição que faz diferença, é onde o imprevisível acontece, favorecendo a formulação de novas normas, negociações que avançam e retrocedem. São as relações de convivência que podem agenciar um plano de forças que compõe um comum, em que especialistas, professores, pais e alunos constroem acordos possíveis a cada vez, expresso em análises e escolhas.

Esse é um caminho que fortalece a expansão da dimensão pública como plano de experimentação, um entre-nós como exercício que nos convida a pensar e a interferir, dimensão ético-estético-política das práticas de formação.

 

JF -É função da(o) psicóloga(o) participar do trabalho de elaboração, avaliação e reformulação do projeto pedagógico de cada escola. Quais são os principais desafios nesse sentido?

 

MLR – Cabe ao psicólogo que vai desenvolver um trabalho com educadores se apropriar dos conhecimentos e polêmicas vinculados às atividades educacionais, a fim de que possa participar da construção de um plano de indagação do que se passa nas políticas públicas para a educação, nos movimentos que discutem a realidade em aproximações e diferenças e no próprio cotidiano escolar, contribuindo na composição de novos possíveis.

 

JF – Como vê as possibilidades do trabalho da(o) psicóloga(o) em relação aos conflitos e à violência que muitas vezes são produzidos nas práticas institucionais?

MLR – As queixas de indisciplina e violência, caracterizadas como mau comportamento, desrespeito, bagunça ou mesmo ausências (aluno fora da sala ou sem atenção dentro da sala), vêm aumentando e levando muitas vezes a escola a priorizar a disciplina como objetivo educacional, o que gera apenas expectativas normalizadoras. É importante ressaltar que, quando a questão disciplinar passa a ser o eixo norteador do processo educacional, as relações entre os diferentes segmentos passam a ser avaliadas dentro da dualidade respeito ou desrespeito à ordem.

Assim, multiplicam-se as técnicas de controle e as oposições entre direção e professores, direção e funcionários, professor e aluno, escola e família, inviabilizando outros modos possíveis de convivência. É importante considerar que disciplina e indisciplina se constroem ao mesmo tempo. A questão, aqui, é saber se a indisciplina é enfrentada nas relações que a constituem ou se é entendida tão-somente como expressão.

Para problematizar essa questão e produzir algumas pistas pontuais para reflexão, vamos experimentar uma inversão: o que reduz a multiplicidade dos modos de ser criança, jovem, e de se entender a indisciplina sob outra ótica? Vejamos alguns pontos que nos parecem interessantes:

1. Na lógica estabelecida, a infância e a juventude perdem seu caráter dinâmico e passam a ser fenômenos únicos, fases que se processam segundo certos determinantes que definem os alunos pela ausência dos caracteres preconcebidos como normais, restando o diagnóstico do desvio e as relações de ajuda. A situação se agrava quando se trata das classes populares, uma vez que há um distanciamento dos comportamentos esperados, das expectativas, de interesses, do ritmo de aprendizagem e das maneiras de convivência em grupo que demandam ações diferenciadas e novas indagações.

2. A sociedade contemporânea sofreu um encolhimento da organização pública, e a indisciplina, se pensada fora das práticas coletivas, deixa de ser entendida como efeito dos conflitos do processo, ficando aprisionada na existência individual – acaba se circunscrevendo no domínio do íntimo e sendo psicologizada. A escola é o único equipamento coletivo, que junta gente em meio a uma sociedade que separa, que produz subjetividades atravessadas por medo, isolamento. Conviver não é fácil, é uma arte que requer experimentação de afetos, discordâncias, conflitos, arte das aproximações e distâncias. Se o único olhar para o plano da convivência é o moralizante, o constritor, isso terá efeitos como, por exemplo, o de julgar o outro como sendo sempre inábil.

3. A criança e o jovem são vistos isoladamente do contexto que a escola oferece, sendo considerados portadores de diferentes carências e patologias, com características como ambivalência, fragilidade, exposição a riscos e, nos casos das classes populares, violência e marginalidade. Concluímos que o projeto educacional está, portanto, ancorado em uma visão assistencial, ou seja, em cuidados e prevenção, produzindo relações de dependência dos educadores perante os especialistas e impotência de intervir ativamente no processo educacional.

4. Vimos observando nas escolas que a luta dos educadores está prioritariamente situada nas turmas, com cada aluno, buscando compreender as faltas deste ou estabelecendo novos dispositivos de contenção, o que provoca imenso desgaste, enquanto as condições do ensinar-aprender e os modos de gestão do processo escolar ficam fora das análises.

5. Os mecanismos que trabalham tendo como meta acabar com a indisciplina, que é um conflito inerente às relações de aprendizagem, descentram o professor da experiência da ambiguidade do lugar que ocupa e, consequentemente, da possibilidade de, junto com os alunos, produzir regras comuns e trabalhar a violência implicada no seu papel, que é o de estabelecer margens, limites para que a classe seja um campo de afetação, de provocação, em que o contato com o aluno não é um pré-requisito, mas uma conquista. Quando esse lugar do professor não entra em discussão, o que se impõe é a hierarquia presente como legitimação da autoridade estabelecida e, considerando que a soberania se mantém somente por meio da violência, podemos melhor compreender como a indisciplina, como fenômeno de resistência à ordem, é produzida sistematicamente por toda a comunidade escolar, constituindo-se de modo crescente e insuportável.