Transformando o sofrimento pela palavra
O espaço “Fala, Psicólog@” desta edição contempla a experiência de uma profissional da região Centro-Oeste, Patrícia Marinho Gramacho. Ela contou ao Jornal do Federal sobre sua atuação em Psico-oncologia Pediátrica em Goiânia (GO).
No próximo número, será apresentada a realidade de trabalho de um profissional do Sul do país. Para participar, envie um e-mail para jornaldofederal@cfp.org.br sinalizando seu interesse ou mande uma mensagem para a página do CFP no Facebook.
Confira a entrevista.
Patrícia, qual é sua área de atuação na Psicologia?
Atualmente desenvolvo trabalho dentro das áreas Clínica, Hospitalar (Pediatria Oncológica) e Educacional (Supervisora de estágio dentro da Área Hospitalar tanto da graduação quanto da especialização). São três áreas que se complementam e que me possibilitam manter o dinamismo e amor pelo que faço.
No atendimento clínico em consultório, me permito descansar um pouco da demanda exaustiva do ambiente hospitalar, visto que atendo clientes com conflitos diferenciados, não apenas relacionados ao enfrentamento de um tratamento oncológico. Obviamente possuo um setting mais estabelecido quando atendo em consultório, podendo exercitar uma escuta ativa fundamentada na atenção flutuante e no bom estudo da psicanálise. Ao mesmo tempo, a proximidade com os fatores orgânicos vivenciados no ambiente hospitalar me ensinaram a ser cada vez mais assertiva no psicodiagnóstico clínico, valorizando cada vez mais a integração mente–corpo.
Já a realidade do atendimento em Psico-oncologia Pediátrica envolve a compreensão do que é uma Pediatria Oncológica e como desenvolvo esta psicanálise mais afastada da situação de onde ela tradicionalmente opera, ou seja, afastada do divã, porém invadida por um real desorganizador de des-subjetivação e principalmente corporificado por uma precariedade de recursos simbólicos, visto que se lida com uma doença física ainda a ser representada no universo da criança e dos pais que a acompanham. São construções de significado feitas paulatinamente, desde a compreensão do que é o universo hospitalar até o entendimento do que seja um câncer e de que forma ele pode ser vivido. Sendo assim, compreende-se que esta psicanálise aplicada às instituições é tão exigente quanto aquela que se processa no espaço privado dos consultórios particulares, e exige do analista a superação da própria interioridade e da sua suposta especialidade porque, só assim ele, poderá vir a estar disponível para o uso que se fizer dele.
O trabalho de maior enriquecimento humano é no Serviço de Oncologia Pediátrica do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia. Pela escassez de escritos e pesquisas dentro da área, busquei a construção de técnicas de intervenção que não destoassem da abordagem escolhida por mim como referencial teórico, ou seja, a psicanálise aplicada.
Sabe-se que a psicanálise aplicada caracteriza-se principalmente pelo uso de um setting estendido onde nem sempre o psicanalista é o único a corporificar a transferência do paciente. Ela se faz com a instituição, com outros funcionários e nos mais diversos espaços hospitalares. O trabalho é extenso e contínuo levando muitas vezes o analista a arranjar-se com meios-limites na tentativa de ressignificar aquilo que lhe aparece.
Como é sua rotina de trabalho?
A Pediatria do Hospital Araújo Jorge atende uma demanda do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, sendo o segundo maior Centro de referência de atendimento SUS especializado no tratamento do Câncer infantil. Trata-se de uma proposta multidisciplinar de tratamento, que chega à quantidade de 600 a 700 atendimentos-mês.
É conjuntamente com uma equipe multidisciplinar (médicos, enfermeiros, musicoterapeutas, fisioterapeutas, nutricionistas, voluntariado, etc.) que se desenvolve um trabalho enquanto psicanalista, tendo a proposta de ampliação desta escuta analítica ao sofrimento que está inerente ao processo de doença e hospitalização.
O trabalho diário se divide em acompanhamento psicológico às crianças e adolescentes e seus respectivos acompanhantes. Quando internados, desenvolve-se um trabalho de escuta ativa, seja no leito ou em grupos de atividades, onde se possibilita um espaço para expressão de conteúdos e possível construção de suas representações pelo uso de diversos materiais plásticos (massinha, lápis de cor, recorte e colagem, contação e criação de histórias). Pode-se, assim, observar a relação da díade mãe-filho ou de qualquer outro acompanhante que esteja desenvolvendo esta função de cuidador. Ao mesmo tempo, se possibilita um espaço de ressignificação da rotina hospitalar, marcada por punções venosas, cirurgias, sondas, exames de sangue, uma série de procedimentos que invadem o universo corporal da criança ou adolescente. Paralelamente faz-se todo um trabalho de mediação e amparo à família, facilitando sua comunicação com a equipe e, ao mesmo tempo, auxiliando a equipe a lidar com este núcleo familiar tão fragilizado pela recepção de um diagnóstico de câncer e tudo o que vem associado a ele.
Também se desenvolve sempre que possível um trabalho em Sala de Espera –
aqui designada com letra maiúscula – pois cada vez mais me surpreendo com sua vida própria. Ela respira e transpira todas as preocupações, alegrias, tristezas, adequações e inadequações de seus transeuntes. Para um bom psicólogo, torna-se o lugar ideal para exercitar a capacidade de observação e posteriormente traçar seu instrumental de ajuda. Digo ajuda, pois não estou falando de qualquer Sala de Espera, mas especificamente da Sala de Espera de uma pediatria oncológica normalmente carregada de muitos questionamentos do tipo “Meu cabelo vai cair?”; “Vou ter que tirar a perna”?; “Só fica aqui (se referindo ao hospital) quem tem câncer?”; “Apareceu um carocinho nela e eu trouxe pra cá, será que eu deveria ter ido para o Hospital da Criança?”; “Eu vou morrer?”; “Se Deus quiser, não vai ser nada”; “Me falaram que leucemia é muito grave, que não tem cura”; “Falei pra ele (se referindo ao filho) que tô chorando por causa de dinheiro, mas não é não”. Essas são algumas verbalizações de pacientes e acompanhantes enquanto aguardam na Sala de Espera pela primeira consulta e que parecem ilustrar as dúvidas e temores de estar pela primeira vez numa pediatria oncológica.
A partir do trabalho conjunto com diversas estagiárias de Psicologia que passaram pelo Serviço, foi possível desenvolver um trabalho que com certeza também as auxiliou a confiarem mais na capacidade de observação e escuta de cada uma e, principalmente, a acreditar no quanto a escuta ativa já funciona por si só como instrumento terapêutico, exercitando a capacidade de estabelecimento do comportamento empático, ou seja, a capacidade de “estar com”, ensinando-as a não serem invasivas, a abrirem o espaço para o outro comparecer e se dispor a falar.
O que você considera mais positivo em relação ao seu cotidiano de trabalho?
A possibilidade de transformar o sofrimento pela palavra, ressignificando as dificuldades. Sabe-se que é um trabalho difícil, pois lidamos com um grupo heterogêneo, rotativo, com crianças e adolescentes de diferentes idades, diferentes fases do processo de tratamento, de diferentes regiões do país e até do mundo. Ao mesmo tempo, é enriquecedor quando chegamos com um saco de fantoches e espontaneamente uma criança passa a falar de sua “cirurgia no ombro”, ressignificando sua experiência com o grupo ou simplesmente com um outro e se posicionando com relação às intempéries da vida.
Quais as limitações que você encontra no seu cotidiano de trabalho?
Limitações próprias de um Sistema de Saúde ainda deficitário que cria situações inimagináveis para qualquer paciente, fato que dificulta mais ainda a possibilidade de representação tanto pelo paciente quanto pela equipe. Como fazer pensar uma criança oprimida por tantas limitações sociais e de saúde? Falta muita coisa. Daí a importância da manutenção do estudo frequente e da análise pessoal como forma de lidar com as próprias frustrações.
Sabe-se que a partir do instante em que a criança vai percebendo o psicólogo-analista como este que permite instituir um lugar para a falta, ela vai requisitando ir para este lugar que o representa e que está emoldurado como sala de psicologia, onde então a angústia passa a ter representações cada vez mais personalizadas. Não é um falar por falar, ou um brincar por brincar. Ainda que a criança verbalize que este é o lugar dela se divertir, um “quero brincar com tu”, mostra-se como uma construção muito mais elaborada e ativa. É uma maneira de a criança usar de forma singular a montagem institucional, ou seja, ela tem o direito de usufruir de um espaço diferenciado e passa a requisitar o uso dele.
Remeto-me como exemplo, a um caso de uma criança de sete anos de idade, portadora de um Rabdomiossarcoma (RMS), um tumor de partes moles e frequentemente maligno, que expôs pelo desenho associado a verbalizações durante um atendimento psicológico, todo o seu receio de estar possuída por algo demoníaco, visto que, pelas suas crenças, o único ser poderoso que ela conhecia e que possuía “rabo” (associação vinculada à parte do nome do tumor – Rabdo) era um Diabo e como tal ela tinha o receio de também se transformar em algo com “rabo”, fato extremamente assustador. Daí as inúmeras vezes em que este “rabo” foi apagado e reapagado no desenho. Possibilitar um espaço de expressão desta imagem terrorífica para a criança foi fundamental para que as transformações pudessem começar a acontecer até que a figura final se transformasse em uma sereia, outro personagem mítico, porém mais ambivalente e menos ameaçador, ainda que mortal. Talvez daí poder usar o canto da sereia, não para ser engolido por ele, mas para falar do próprio medo da morte.
Registros como este me fazem continuar e superar as frustrações.