Sem democracia, não existe política pública de saúde mental. Esse foi o consenso entre todos os debatedores do seminário “Alterações na política nacional de saúde mental e os impactos na luta antimanicomial”, promovido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pela Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde (CNS/CISM). As discussões ocorreram, dia16 de março, na Tenda Marcus Vinícius, montada no Fórum Social Mundial (FSM 2018), em Salvador (BA).
A vice-presidente do CFP, Ana Sandra Fernandes, fez a mediação do debate, que lembrou os 30 anos da luta antimanicomial e os retrocessos na área com as novas medidas do atual governo. A resolução da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) de dezembro de 2017 – que estabeleceu novas diretrizes para a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) – foi duramente criticada pelos participantes, por desfigurar a política de saúde mental e afrontar as diretrizes da política de desinstitucionalização psiquiátrica, prevista na Lei 10.216/2001.
“Direta ou indiretamente, a nova política propõe retroagir no tempo. No tempo do desrespeito a todos os direitos, no tempo da violência no trato, do cerceamento da liberdade, do enclausuramento, no tempo da invalidação como modo de vida, do silenciamento imposto pelo enfadonho monólogo da razão, o tempo do abandono e da negligência, da infantilização e da tutela”, criticou a psiquiatra, psicóloga e membro da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), Miriam Abou-Yd.
Retrocessos
Na mesma linha, o membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Leonardo Pinho, ressaltou que as medidas anunciadas pelo atual governo violam a Constituição Federal e que os retrocessos não estão ocorrendo apenas na saúde. “São passos para trás em direitos já conquistados pelo povo.”
Pinho destacou como medida mais extrema dos retrocessos a aprovação da Emenda Constitucional no 95, que congela investimentos públicos nas áreas sociais por 20 anos. “Ao rasgar a Constituição de 88, criaram regressividade na democracia brasileira e diminuíram sua intensidade. E sem democracia não há política de saúde pública universal, não há um processo de reforma psiquiátrica.”
Entre as políticas de saúde mental atingidas pelos retrocessos está a política de redução de danos relacionada ao uso de drogas. É o que afirmou o representante da Associação Brasileira de Redução de Danos (Aborda), Domiciano Siqueira. Na sua avaliação, a política de redução de danos só é possível dentro do ideal dos direitos humanos.
A presidente da Federação Nacional dos Psicólogos (Fenapsi), Shirlene Queiroz, enfatizou os avanços na política de saúde mental na última década, interrompidos com as últimas decisões governamentais. “A 4ª Conferência Intersetorial de Saúde Mental sinalizava que não bastavam apenas Caps ou residências. Vislumbramos aquilo que a gente dizia há 30 anos, que para erradicar internação em hospital psiquiátrico era preciso ter serviços e oportunidades de cuidado. Começamos, então, a trabalhar com a rede de atenção psicossocial, mas, a partir de 2016, a rede de atenção psicossocial começa a ser desmontada.”
Resistência
Os debatedores também falaram de resistência. Domiciano Siqueira lembrou que “é no recrudescimento que a gente acorda” e Leonardo Pinho garantiu: “Vai ter muita resistência. Violam a democracia, mas estamos resistindo, porque 30 anos de luta não podem ser apagados com uma canetada”. Shirlene Queiroz completou, afirmando que para calar um, será preciso calar todos nós, “porque o nosso grito vai ecoar ontem, hoje e sempre”. Por sua vez, Miriam Abou-Yd destacou que, enquanto o autoritarismo é um dos componentes típicos da lógica manicomial, “a delicadeza, a coerência, o respeito e a democracia são exigências essenciais e inevitáveis na construção e sustentação de uma política de saúde mental”.
Sistema prisional
A atuação da Psicologia no sistema carcerário também foi tema de debate na Tenda Marcus Vinícius, durante o seminário “Sistema Prisional: perspectivas no enfrentamento à violação de direitos”.
O conselheiro Pedro Paulo Bicalho, do CFP, destacou que, se na década de 1970, a maioria da categoria atuava na área clínica, agora mais de 60% estão nas políticas públicas. “A pergunta que a gente se faz é: será que a nossa formação hoje também contempla essa interface da Psicologia com as políticas públicas?”.
Alfredo Assunção, doutorando em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destacou o impacto das privatizações e da terceirização no aumento dos casos de violação de direitos no sistema prisional e questionou qual seria o motivo de o Brasil insistir na privatização de penitenciárias, mesmo com exemplos de fracasso em todo o mundo.
A conselheira Marcia Badaró, também do CFP, fez um recorte do encarceramento feminino e apresentou sua experiência de 32 anos como psicóloga no sistema prisional, cuja população carcerária feminina cresceu 698%, em 16 anos. Badaró contou que, do total das mulheres presas, 80% são mães ou responsáveis principais ou únicas pelos cuidados de filhas e filhos. Ela mostrou que o encarceramento feminino gera outras graves consequências sociais. “Na minha experiência esse era o maior problema: os filhos que ficaram na rua. Enquanto em uma unidade prisional masculine, os presos ficam mais preocupados com o andamento de seus processos, na unidade feminina, as perguntas são para saber onde e como estão os filhos. Essa angústia é enorme para as mulheres. Além disso, 45% delas têm menos de 25 anos, 57% são pardas e 53% têm menos de oito anos de estudo. Além disso, 43% ainda não tiveram seus casos julgados e estão em prisão provisória”.
Badaró lembrou, ainda, que há legislações no país que permitem substituir a prisão preventiva pela prisão domiciliar em caso de mulher grávida, ou que preveem o regime domiciliar para presas provisórias que sejam gestantes ou que tenham filhos pequenos. Mas reforçou que, na maioria dos casos, essas legislações não são efetivadas.