Conforme aponta o Atlas da Violência 2023, o risco de uma pessoa negra no Brasil ser assassinada chega a ser 2,9 vezes maior do que uma pessoa não negra. Ainda de acordo com a publicação, o país registrou um crescimento de 29% dos casos de homicídios de pessoas indígenas desde 2011. Alarmantes, os dados indicam que, mais do que urgente, o enfrentamento ao racismo torna-se extremamente vital.
Ao longo dos anos, a Psicologia brasileira vem reafirmando o seu compromisso ético-político com a promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, visando contribuir para a eliminação de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nessa direção, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) aderiu, neste ano, à campanha 21 Dias de Ativismo Contra o Racismo – iniciativa que reúne um conjunto de atividades realizadas por diferentes entidades públicas e organizações da sociedade no marco do Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, celebrado em 21 de março.
“Todas as instituições brasileiras, via de regra, são atravessadas pelo racismo. Não seria diferente com a Psicologia brasileira”, avalia a psicóloga Alessandra Almeida, conselheira do CFP e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Autarquia.
A conselheira ressalta que, por ter sido desenvolvida no Brasil a partir de teorias européias e norte americanas que não dialogavam com a realidade complexa do nosso país, a Psicologia aqui realizada se organizou a partir de uma estrutura de colonialidade que se firmou a partir do tripé gênero, raça e classe – caracterizando relações de subordinação e hierarquia que impactam a vida das pessoas. “A gente tem um choque extremamente violento, porque temos uma população com realidades diferentes, com distintos impactos na sua saúde mental, na sua forma de ser e estar no mundo”, frisou.
Alessandra reflete que o mito da democracia racial ainda pairava até recentemente, quando os dados oficiais sobre os índices de desenvolvimento humano, por exemplo, começaram a demonstrar a vulnerabilização a qual determinadas populações (as pessoas negras, em geral) estavam expostas, causando processos de invisibilização. A esse respeito, explica que o fato do próprio Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o) ter como base os princípios e valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos permitiu que essa ciência e profissão – enquanto foi ampliando seus campos de atuação aos longos dos anos – pudesse também refletir sobre suas práticas e promover debates com um olhar para a população e as idiossincrasias que estão presentes no nosso país, “não de um lugar de superioridade, mas de um lugar de respeito à dignidade”. Ainda segundo a conselheira, “isso nos traz mais uma vez a obrigação de olhar para as realidades do nosso país e pensar, refletir e problematizar, inclusive, as teorias psicológicas que durante muito tempo foram utilizadas para reforçar estigmas e preconceitos”.
Interseccionalidade indígena
Embora o racismo esteja fortemente associado a uma série de violações de direitos da população negra, a questão também atravessa a realidade das populações indígenas. Segundo explica a psicóloga e conselheira do CFP, Nita Tuxá, que também integra a CDH do Conselho Federal, é muito importante que as narrativas coloniais possam ser refeitas a partir dos impactos às pessoas indígenas.
Além do preconceito relacionado a questões de fenotipia, alerta a conselheira, os povos originários também enfrentam o racismo ambiental, a intolerância religiosa e o desrespeito quanto à sua relação com o território e organização social. “Assim como as pessoas negras, as pessoas indígenas são destituídas social e epistemologicamente pela ciência e pelas religiões”, denuncia Nita ao salientar ainda que o processo colonizador tem, sistematicamente, invisibilizado as existências desses povos, sua diversidade e pluralidade cultural.
O racismo estrutural vivenciado pelas(os) indígenas revela também, na análise de Nita Tuxá, uma ambivalência do Estado brasileiro na medida em que, embora sejam reconhecidos os direitos desses povos, esse mesmo Estado os viola em função de seus interesses. O modelo capitalista e a lógica do agronegócio acabam por incutir a ideia de que a presença indígena em determinados processos, como o de demarcação de terras, impede o progresso do país.
Atrelada a essa situação está a falta de compreensão da(o) indígena como sujeito de direitos, assim como o não reconhecimento de que, para além da imagem estereotipada, elas(es) são marcados por interseccionalidades e vivem nos mais diversos espaços para experienciar suas subjetividades.
“Penso que a Psicologia brasileira tem avançado, mas é um avanço tímido”, comenta a conselheira Nita Tuxá ao defender a necessidade de que essa ciência e profissão ressignifique as formas de cuidados: “a gente precisa entender que nós estamos aqui no movimento e em movimento no desejo de construir uma Psicologia que tenha no seu campo de atuação, de escuta, de acolhimento, de fala, a epistemologia do cuidado”.
Campanha nacional de direitos humanos
Para o Conselho Federal de Psicologia, o Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial é oportuno para destacar a nova campanha das Comissões de Direitos Humanos (CDH) do Sistema Conselhos que, entre outros objetivos, procura debater a descolonização da Psicologia como fundamento para a atuação da categoria em direitos humanos.
Na avaliação da conselheira Alessandra Almeida, as CDHs dos Conselhos de Psicologia exercem, há 25 anos, o papel essencial de levantar as demandas de direitos humanos e ampliar o diálogo com a categoria, a sociedade civil organizada, os movimentos sociais e a população como um todo, objetivando provocar mudanças estruturais.
O racismo no Brasil e o sexismo nas LGBTfobias devem ser considerados, acredita Alessandra, como determinantes sociais e políticos importantes da saúde mental. Assim, descolonizar corpos e territórios representa chamar a atenção para a ideia de que a Psicologia precisa ser construída no território, respeitando as pessoas, suas necessidades e seus saberes tradicionais.
Para a conselheira Nita Tuxá, uma das questões mais importantes sobre a campanha Descolonizar Corpos e Territórios – Reconstruindo existências Brasis é o fato de que a pluralidade de pessoas que compõem a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia se reflete também nas ações que são planejadas pelo coletivo. “Quando a gente fala em descolonizar a Psicologia, corpos e territórios, estamos falando da possibilidade de criar epistemologias de cuidados. E isso representa romper ou ressignificar padrões que foram estabelecidos anteriormente, dessa Psicologia que foi importada, que vem do colonizador e que reproduz a colonização”, enfatiza.
Um dos objetivos da campanha, complementa Alessandra, é chamar a atenção para a diversidade da existência: “e isso vai exigir uma sensibilidade e uma prática ético-política que seja condizente com essa ideia de compromisso e de respeitar as humanidades nas formas em que se apresentam”.
Nita também explica que os desafios passam por uma percepção das diferenças entre o individual e o coletivo, que tanto interferem nas dinâmicas sociais e nos processos de cuidado. “A gente tem vivido os processos de defesa de uma subjetividade individualista que culpabiliza o sujeito por suas mazelas sociais, pelos seus adoecimentos, ao mesmo tempo em que entendemos que há um sistema que está posto e que nos violenta, que viola direitos básicos, como o de viver e o de existir”.
Ainda no entendimento da conselheira indígena, uma Psicologia posicionada, política e crítica só se torna possível quando se faz em contato com as pessoas: “eu tenho andado bem mais esperançosa nesse movimento de enxergar essas Psicologias, essas formas plurais de entendimento desse fazer, dessa prática profissional. Então, eu entendo que uma Psicologia racializada é possível. Racializada no sentido de promover uma escuta sensível, atenta, contextualizada; que vê os territórios, as pessoas; que reconhece a história de determinados lugares e do seu povo”.
Ao reforçar o pertencimento ao território, Nita Tuxá menciona uma reflexão de Myrian Krexu, que pondera que “a mãe do Brasil é indígena, ainda que o país tenha mais orgulho de seu pai europeu que o trata como um filho bastardo. Sua raiz vem daqui, do povo ancestral que veste uma história, que escreve na pele sua cultura, suas preces e suas lutas. […] O indígena não é aquele que você conhece dos antigos livros de história, porque não foi ele que escreveu o livro então nem sempre a sua versão é contada. Ele não está apenas na aldeia tentando sobreviver, ele está na cidade, na universidade, no mercado de trabalho, na arte, na televisão, porque o Brasil todo é terra indígena”.
Para mais informações sobre a campanha da CDH/CFP, clique aqui.
Política de cotas
No âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia, uma ação expressiva em 2022 marcou o compromisso do CFP e dos CRPs em relação ao tema. Durante o último ciclo eleitoral dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e da Consulta Nacional para o CFP, passou a ser obrigatório às chapas o cumprimento de um percentual mínimo de cotas para pessoas negras, pessoas trans, pessoas com deficiência, povos tradicionais e indígenas nas candidaturas – figurando ação pioneira em processos eleitorais de conselhos de categoria no Brasil.
Alessandra pondera que a medida contribui para que o enfrentamento ao racismo seja abordado em todos os níveis: “quando a gente faz essa primeira eleição que traz essas outras identidades para dentro do espaço político do Sistema Conselhos, é uma forma de nós nos colocarmos no sentido de não-recuo e de defesa aos direitos humanos e de enfrentamento também de forma contundente e intransigente ao racismo no nosso país”.
Confira as principais normativas, publicações e ações na área:
Resolução CFP nº 18/2002: estabelece normas de atuação para psicólogas(os) em relação ao preconceito e à discriminação racial.
Relações raciais: referências técnicas para a prática da(o) psicóloga(o): elaborado no âmbito do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop).
Campanha “Racismo é coisa da minha cabeça ou da sua”: iniciativa das Comissões de Direitos Humanos do Sistema Conselhos de Psicologia entre 2020 e 2022 no marco das duas décadas da Resolução CFP nº 18/2002.
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