O Brasil não tem muito a comemorar no dia 9 de agosto

O Brasil não tem muito a comemorar em 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas. Em 2018, o tema proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a data é “Migração e Movimento”. Alguns países já adotaram medidas constitucionais e legislativas para reconhecer os direitos e a identidade dos povos indígenas, mas a exclusão, a marginalização e a violência contra os povos indígenas continuam a se disseminar, como é o caso brasileiro.

O psicólogo Bruno Simões Gonçalves, especialista em populações indígenas e tradicionais em luta por território, conta que os povos Krenak, do interior de Minas Gerais, e Xavante, de Mato Grosso, sofreram graves violações de direitos humanos por parte do Estado brasileiro.

“Percebi que a violência política estatal desarticulou elementos centrais da cultura tradicional do povo Krenak. A ação violenta dos organismos de Estado no episódio do reformatório foi responsável pelo quase desaparecimento da língua Krenak, pela devastação do seu território tradicional e pela diminuição drástica de práticas religiosas tradicionais dessa população.” O psicólogo foi convidado pelo Ministério Público Federal (MPF) para redigir parecer técnico sobre a violência política sofrida durante a ditadura pelos Krenak. Ele tentou verificar quais foram e qual a intensidade dos impactos psicossociais sobre a população e seu modo de vida a partir da construção de um presídio indígena.

Sintomas individuais e coletivos

O Reformatório Krenak foi construído no interior da terra indígena Krenak e funcionou, de 1969 a 1973, como prisão para indígenas de todo o país que, por algum motivo, entraram em conflito com a lei. Hoje, sabe-se que muitos desses indígenas aprisionados eram lideranças que lutavam junto com seus povos contra as atrocidades dos militares.

Gonçalves estudou os impactos psicossociais dessas violações sobre as dimensões individual e coletiva no modo de vida Krenak. Sob a ótica da Psicologia Social, ele utilizou a noção de traumatização psicossocial coletiva, que pode ter sintomas de ordem individual ou coletiva. “Com base nas observações de campo e nas entrevistas que fiz, percebi que a violência política produziu uma intensa desarticulação nos elementos centrais – a espiritualidade, a língua, a terra, a concepção de humanidade e o pertencimento à terra – da cultura tradicional do povo Krenak”. Outras formas de violência identificadas foram a tortura física e psicológica de homens, mulheres e crianças, o trabalho forçado e a expulsão de suas terras.

Gonçalves também estudou os Xavante, do Mato Grosso, e é autor de um parecer utilizado em Ação Civil Pública (ACP) do Ministério Público Federal (MPF) relacionada ao genocídio daquele povo. O caso também foi analisado pela Comissão Nacional da Verdade.

Sofrimento psicológico

A remoção e a morte coletiva marcam a mudança na vida dos Xavante de Marãiwatsédé. Embora desde os anos 1950 o grupo já vivesse transformações, a remoção de suas terras foi o fato que desestruturou completamente seu modo de vida. Junto com a remoção, explica Gonçalves, “ocorrem a morte coletiva e o enterro dos mortos em vala comum, que impõem um conjunto ainda maior de transformações e de sofrimento psicológico a essa população”.

A retirada dessa população das terras onde funcionaria a fazenda Suiá-Missu foi o último passo no processo “civilizatório” que o Estado colocou em prática. Desarticulado o conjunto de aldeias daquele território e “pacificados” seus habitantes – na forma de escravidão, fome, doença e condições adversas de sobrevivência –, a população restante de Marãiwatsédé foi retirada do local em que vivia. Gonçalves usa uma metáfora para mostrar essa desumanização: “a região foi definitivamente ’limpa’”.

O processo de desumanização se agravou com o confinamento e a escravização dessa população e alcançou nível ainda mais agudo no processo da remoção. O episódio desencadeou, assim, a traumatização psicossocial coletiva.

Raízes

O aspecto central do processo de remoção foi o desenraizamento desses indígenas. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade.

Com a remoção, os Xavante Marãiwatsédé foram retirados de seu território e deixados em outro que desconheciam totalmente. Os indígenas foram lançados sem intermediação em um território que já estava nas mãos de outro grupo. Ou seja, ao serem retirados de suas terras, foram expropriados dos elementos que garantem a autonomia e o empoderamento necessários para sua reprodução social e política. Sem capacidade de uma vida coletiva autônoma, tem início um evidente processo de humilhação social do povo de Marãiwatsédé.

A data

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 13 de setembro de 2007, estabeleceu uma estrutura de padrões mínimos para a sobrevivência, a dignidade e o bem-estar dos povos indígenas.

É o documento internacional mais abrangente sobre direitos coletivos dos povos indígenas no sistema internacional, incluindo o direito à autodeterminação, a suas terras tradicionais, territórios e recursos, educação, cultura, saúde e desenvolvimento.

Existem aproximadamente 370 milhões de indígenas em mais de 90 países ao redor do mundo. Representam menos de 5% da população mundial, mas respondem por 15% dos mais pobres. Eles falam uma esmagadora maioria dos 7 mil idiomas do mundo e representam 5 mil culturas diferentes. Vivendo tradições singulares, perpetuam características sociais, culturais, econômicas e políticas distintas das sociedades predominantes nas quais estão inseridos.

Para o conselheiro Paulo Maldos, integrante do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a existência da data estipulada pela Organização das Nações Unidas (ONU) é reconhecimento mundial da existência desses povos e da importância que eles têm para as sociedades contemporâneas, tanto do ponto de vista da preservação de seus territórios, quanto pela contribuição que dão às nossas culturas e os exemplos que dão às formas de organização de suas sociedades. “São sociedades mais respeitosas, mais democráticas e não têm a exploração como base. Esses povos têm uma visão de futuro, são mais humanizados e têm a igualdade e a reciprocidade como valores ancestrais. São, também, povos contemporâneos, porque têm como base o respeito, tanto com o território, quanto para com o outro.”