“Cidadania e reconhecimento” foi o tema da terceira e última entrevista (discussão) do 1º Colóquio Internacional em Recovery (Restabelecimento): Vivências e Práticas, encerrado nesta quinta-feira (26), em São Paulo. Os (as) participantes descreveram e debateram resultados de ações em diferentes países voltadas a inserção comunitária e autonomia cotidiana.
A psicóloga Catarina Dahl destacou que a injustiça social, combinada à condição da loucura, eleva “à sua máxima potência” a marginalização da pessoa com sofrimento mental. Ela lembrou o caso recente de usuária do sistema de saúde mental que deu à luz numa cela de cadeia, sem qualquer assistência. Catarina definiu cidadania como o acesso a direitos políticos, sociais e civis, além de “participação efetiva na vida de uma cidade”.
Coordenadora do Projeto de Pesquisa Rede Américas, ela contou sobre a experiência do suporte de pares (outros usuários) no Rio de Janeiro – a primeira, segundo informou, acompanhada de modo sistêmico e avaliado no país. Relatou o acompanhamento de uma participante de 54 anos. “Ela dizia que ‘nasceu trabalhando’, e, antes de se aposentar por invalidez, era funcionária de um supermercado. Estava sempre sendo acusada de roubo e sua primeira crise eclodiu após agressão por uma cliente”, disse. Com isso, a usuária passou a ter resistência ao contato com dinheiro, o que foi o primeiro desafio a enfrentar. Esse e outros foram enfrentados, como o deslocamento em ônibus urbano para o Centro de Atenção Psicossocial.
Ao lado da reação muitas vezes incrédula diante do reconhecimento – expresso por frases como “Caramba, como pode acreditar na gente?!” –, a pesquisadora apontou a necessidade de reconhecer os limites do (a) profissional, incluído o risco de paternalismo e da construção de “muros invisíveis” entre as duas partes. “Reconhecer que somos iguais foi um desafio muito grande. Muitas vezes, a capacidade dos pares e usuários de criar soluções coloca nossa atuação profissional no chinelo”, pontuou.
Para o presidente do (IRCC), Michael Rowe, há duas formas de pensar a cidadania: quanto a direitos das pessoas e deveres em relação ao governo e quanto à participação cívica. Ele citou os “cinco Rs”, iniciais das palavras em inglês (“rights”, “responsibilities”, “roles”, “resources”, “relationships”) que, ao lado da noção de pertencimento, resumem essa compreensão. Codiretor do Programa de Recovery e de Saúde Comunitária na Escola de Medicina de Yale, o psiquiatra narrou a construção de uma relação de confiança com pessoas sem moradia (homeless) na década de 1980. “Foi preciso ir a elas, o que fizemos com uma equipe multidisciplinar, e começar a construir uma relação ‘com a pessoa’, não ‘com o paciente’. Satisfazer as necessidades dela – a começar por um tratamento dentário ou acesso a programas sociais, por exemplo – e não com o que pensávamos que eram suas necessidades”, explicou.
Outro obstáculo, acrescentou, era a sensação de deslocamento de muitos participantes ao serem acomodados em apartamentos, seja pela falta de contato social como o que tinham nas ruas ou pela rejeição pelos vizinhos. Rowe falou sobre ações implementadas para superar esses gargalos, como aulas informais sobre os “Rs” e sobre questões práticas, que iam da prevenção da aids a direito de propriedade; um grupo de convivência para troca de experiências; e um manual de cidadania. “Construímos, ainda, uma medida de cidadania, com base nas definições deles sobre o que isso significa”, disse.
Recovery social
O sociólogo Markku Salo discorreu sobre seu trabalho com as associações de usuários. “Estou trabalhando no conceito de recovery social baseado na experiência”, comentou o finlandês, que ligou a dedicação ao assunto ao histórico do pai, que morreu 19 anos após o diagnóstico de esquizofrenia. “Talvez tivesse vivido mais se não tivesse tomado tantos coquetéis e lítio.” O convidado apontou o reconhecimento dos especialistas por experiência na área de Saúde Mental, mas alertou para o risco de “serem colocados num pedestal” – ou, por outro lado, de não serem devidamente remunerados.
“Acho que posso dizer que não há recovery sem inclusão social, não há inclusão social (de pessoas com sofrimento mental) sem expertise por experiência e não há expertise por experiência sem recovery”, resumiu.
Partindo do histórico brasileiro, o coordenador do Centro de Investigação em Políticas Públicas de Saúde Mental, Pedro Gabriel Delgado, apontou uma aproximação, nas duas últimas décadas, entre o ponto de vista dos familiares – antes aglutinados em torno da defesa das longas internações – e aquele majoritariamente defendido pelos usuários e pelos profissionais da área. Ele situa nesse contexto o projeto de pesquisa e extensão Familiares Parceiros do Cuidado (FPC).
“A iniciativa propicia espaços de convivência, onde ocorre a troca de informações e a construção de laços de solidariedade”, descreveu. “Isso permite a circulação do saber prático e ajuda a suavizar a sobrecarga comum nessas famílias.” Delgado mencionou também projeto para avaliação dos serviços de atenção psicossocial, frente consolidada em outros países, com a necessidade de capacitação de familiares-pesquisadores.
Conquista
“Recovery, para mim, é conquista e cidadania.” Assim definiu o presidente da Associação Florescendo a Vida de Familiares, Amigos e Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Campinas (Aflore), Luciano Lira. Ele contou que é usuário de tratamento psiquiátrico há 20 anos e que já foi submetido a práticas como eletrochoque e “sossega-leão” (injeção tranquilizante), além de uma internação de 30 dias no extinto Hospital Psiquiátrico Tibiriçá, em 1998. “Eu via pessoas se lambuzando com fezes e urina e pensava: ‘Meu Deus, não estou mal assim, por que estou aqui?’”
Em contraste, Lira falou de seu dia a dia no Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, que oferece variadas atividades de lazer e formação. Ele grava o programa Maluco Beleza, da rádio online de mesmo nome. “Circulam ali adultos e crianças, homens e mulheres, com histórias, sonhos, alegrias, tristezas, saberes”, testemunhou. “De minha parte, desde que comecei com a rádio, nunca mais tive uma crise.”
A entrevista foi coordenada pelo professor Octávio Serpa, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Encaminhamentos e encerramento
A criação de uma rede em torno do assunto, o aprofundamento das discussões realizadas e a realização de ações de formação e capacitação integram os encaminhamentos aprovados.
As propostas aprovadas resultam dos debates realizados em três entrevistas (discussões a partir de palestras) e quatro grupos de trabalho temáticos. Incluem a construção de uma rede colaborativa entre universidades brasileiras; edições especiais de publicações temáticas; esforços para combater o estigma da loucura e o preconceito entre os trabalhadores dos serviços de Assistência Social e Saúde; e a participação de representantes dos diferentes setores envolvidos com a Saúde Mental na conferência do IRCC em 2017, na Escócia, bem como a proposição de que a do ano seguinte ocorra no Brasil, com envolvimento de outros países latino-americanos.
Foi reafirmada a necessidade de integração dos usuários na formulação de políticas públicas e na condução de pesquisas. O bordão internacional “Nada sobre mim sem mim” deu origem a uma versão trava-língua: “Nada sobre nós sem nós, já que os nós são nossos”.
Durante a sessão de encaminhamentos, os (as) participantes aprovaram, também, a ideia de um curso de formação para pares, a proposição do 18 de maio como Dia Internacional de Luta Antimanicomial (na linha da data celebrada nacionalmente) e a utilização da plataforma OrientaPsi e outros ambientes virtuais que concentrem a mobilização em torno da Reforma Psiquiátrica.
“Nós vamos sentar, vamos escrever, vamos produzir e vamos divulgar o que discutimos aqui e no Congresso da Abrasme”, ressaltou a representante da Comissão Organizadora do Colóquio Graziela Reis. O 5º Congresso Brasileiro de Saúde Mental começa nesta noite, também na capital paulista, com a participação do CFP.
O evento na capital paulista foi encerrado, no começo desta tarde, por Michael Rowe, pelo conselheiro Rogério Oliveira, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), e pelo presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Walter Ferreira Oliveira.
“Foi muito importante poder receber tanta energia e esse conjunto de conhecimentos e debates. Ficou evidente a necessidade de manutenção de diálogo e intercâmbio e iniciativas que ocorrem no Brasil, Itália e EUA. O CFP quer continuar no papel de facilitador de processos que estejam a serviço da saúde mental e da inclusão”, disse o representante da autarquia federal.
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